quinta-feira, 15 de novembro de 2012

VINHOS, ARTE E BOTÂNICA – OS UMBUS DE NAVARRO CORREAS


          Tenho publicado algumas crônicas sobre vinhos e pratos, aqui no blog, talvez fazendo com que alguns me imaginem um expert – um sommelier – ou até mesmo um connaisseur. Devo esclarecer que não é bem isso. Sinto se decepciono os mais afoitos apreciadores de vinhos, que gostam de seguir algumas regras ou que pertencem a tribos do tipo Club Du Taste dun Vin. Sou um artista, uma pessoa que aprecia o belo e que valoriza as sensações. Por isso, procuro a beleza e devo dizer: A beleza chega pelos olhos, pelo olfato, pela pele e pelo gosto também. Assim, deixe-me iniciar este texto por informar que sim aprecio os bons vinhos, mas sem compará-los a couros; terras de determinadas regiões; bananas e outros frutos. Não seria capaz, na mais ampla acepção da afirmação.

          Bebo alguns vinhos, principalmente seguindo seu terroir, em geral a partir de conhecimentos obtidos em minhas viagens. Uma vez entendendo a região em que são produzidos; a cultura de seus povos; seus solos; as vegetações que por lá crescem e; principalmente, as pessoas que os fabricam, acabo seduzido por sua mais bela realização – seus vinhos. E será sobre a estética de um conjunto de rótulos que falarei hoje, literalmente pelos rótulos dos vinhos da Bodega Navarro Correas, de Mendoza, na Argentina, onde estive, em 2006, passando a me envolver sem retorno com suas paisagens e seus vinhos – o magnífico terroir de Mendoza.


Navarro Correas - Coleccion Privada
Cabernet - Merlot - Malbec
safra 2003

          Mendoza é um lugar fascinante, não somente por sua estonteante paisagem, que separa o deserto e a Cordilheira dos Andes, mas também pela beleza da cidade completamente arborizada, onde cada rua é irrigada por um rego de águas cristalinas, que vêm diretamente dos Andes. Não é só no viço dessas árvores e do Parque San Martin, regados por canais artificiais, nos quais correm abundantes essas águas transparentes, que reside a beleza de Mendoza. Seus vinhedos prósperos, que se concentram principalmente na região de Luján de Cuyo e Godoy Cruz, também absorvem essa água mágica da Cordilheira. Umedecendo os solos férteis aos pés da Cadeia Andina, que se formaram pela lenta deposição de cinzas vulcânicas – loess – essa água límpida ajuda a formar o terroir mendoncino, um dos maiores milagres enológicos de nosso Continente.
          Sempre que vou a alguma região vinícola, indago com seus habitantes quais são seus rótulos preferidos, ficando em segundo plano o marketing das bodegas ou o preço das marcas. O habitante do lugar possui em suas papilas gustativas e no seu olfato impressas as melhores experiências de sua neurolinguística nativa. Amam sua terra e, assim sendo, sobressai a eles o terroir local, desde a mais tenra infância. Procurando saber o que bebiam os mendoncinos, em 2006, uma das unanimidades eram os vinhos da Bodega Navarro Correas (www.navarrocorreasreserva.com ). Na época, trouxe de minha longa viagem de mais de 15.000km apenas uma garrafa, que me indicaram: Navarro Correas – Coleccion Privada – Cabernet  + Merlot + Malbec – safra 2003, que foi consumida em ocasião especial e que deixou impressões as mais definitivas sobre este corte de uvas, que fabricam até hoje, com absoluta regularidade e qualidade.
          Dá para ver que me tornei admirador dos vinhos desta bodega, que bebo fielmente, sendo bastante recomendável a linha chamada ALEGORIA, cuja qualidade acabei conhecendo, mais tarde, em 2008, num espetacular restaurante em San Martin de Los Andes, na Patagônia, cujo curioso nome era Ku. Acompanhou um churrasco de ovelha argentina igualmente inesquecível. Mas, o que motivou este texto, na verdade, foi um aspecto da Bodega Navarro Correas que somente veio ao encontro de minha obsessão pela beleza e, como muitos sabem, pela Botânica. Esta vinícola tem adotado, há muito tempo, a prática elogiável de veicular ARTE, nos rótulos de seus melhores vinhos. Indissociavelmente, obras de artistas argentinos, como pode ser visto nas imagens que anexei. Estratégia perfeita, devo afirmar: Associar a beleza das sensações de seus vinhos à beleza das telas que decoram seus rótulos.
          Em meio a isso, encontrei algumas garrafas de Navarro Correas – Coleccion Privada – Cabernet + Merlot + Malbec – safra 2007 - que traziam estampada a imagem dos umbus, que são curiosas árvores que habitam o sul do Brasil, mas principalmente a Argentina e o Uruguay, sendo por lá conhecidos como ombués. Assinavam as telas Nicolás Garcia Uriburu. Umbus são plantas notáveis, cuja identidade botânica é Phytolaca dioica (família Phytolacaceae). Habitam as florestas subtropicais e produzem imensos intumescimentos na base de seus caules, o que já lhes rendeu extensa citação nos cancioneiros gaúchos, uruguaios e argentinos, nos quais se conta que as mulheres e crianças se escondiam entre seus troncos (alguns ocos) e assim escapavam dos invasores inimigos, nas revoluções, que matavam os homens e violavam suas esposas e filhas.


Rótulo do Navarro Correas - Coleccion Privada - Cabernet - Merlot - Malbec - safra 2007
com a figura do umbu - Phytolaca dioica pintada por Nicolás Garcia Uriburu


          Adoro os umbus e pude vê-los nas paisagens que percorri, este ano (2012), durante minha Expedição Fitogeográfica 2012. Também os encontrei plantados nos parques de Montevideo e de Buenos Aires, onde não apenas enfeitam a paisagem urbana, mas também servem de abrigo aos namorados ou aos que apenas desejam se abrigar sob sua sombra, para ler ou tirar uma soneca. Vivas para os umbus; Viva os excelentes vinhos da Bodega Navarro Correas; VIVA O BELO! VIVA A ARTE!


Acima - Vinhedos Cabernet em Mendoza


Acima - Um umbu - Phytolaca dioica - num parque de Buenos Aires
Abaixo - Uma argentina lê seu livro sob a sombra agradável de um umbu.


Abaixo - Flores de um umbuzeiro, na margem do rio Uruguay, entre Argentina e Uruguay, fotografado durante a Expedição Fitogeográfica 2012





sábado, 3 de novembro de 2012

LA RIOJA – ARGENTINA – A FORÇA DA PRÉ-CORDILHEIRA


          No início de 2006, viajamos através dos semidesertos do oeste argentino, partindo de Foz do Iguaçu e passando por Corrientes, Santiago Del Estero e Catamarca, até atingir a Pré-Cordilheira dos Andes, junto à qual seguimos até Mendoza, lendária capital dos vinhos. Foi uma experiência inigualável e muitas fotos podem ser vistas sobre esta expedição no álbum do Flickr - http://www.flickr.com/photos/12389332@N08/sets/72157601726384796/ . Durante esta admirável jornada, na qual experimentamos variações climáticas dramáticas, experimentando calores da ordem de 45oC (Santiago Del Estero) e frio andino, na passagem da Cordilheira ao Chile, conhecemos a zona produtiva de La Rioja, verdadeiro oásis plantado aos pés da Pré-Cordilheira.

          Nossos objetivos, tirando o simples prazer da viagem em si, eram predominantemente naturalistas: Interessavam-me aspectos biogeoclimáticos que me levariam a compreender melhor algumas vegetações brasileiras, que venho até hoje estudando (veja o blog relacionado – Expedição Fitogeográfica 2012). Porém, não havia como ficar indiferente ao quadro revolucionário que víamos, em La Rioja: Grandes plantações de oliveiras e videiras irrigadas com as águas límpidas trazidas por canais, das elevadas montanhas, vicejando sobre férteis solos de loess vulcânico, que abundam ao longo dos Andes.

          Muitos anos depois, já capturado pelos prazeres enogastronômicos, perguntava-me por que não deparava com vinhos produzidos naquela singela paisagem de tintas espanholas. Pois foi na mesma Malambo de Buenos Aires (que citei no post anterior – www.malamboalmacen.com.ar) que vim a encontrar um rótulo que me excitou a curiosidade: Collovati, Malbec, 2008, produzido na região de Soñogasta, em plena Rioja Argentina. O produto foi elogiado pelo dono da Malambo, que venho considerando meu mais producente encontro enológico recente, naquele país.

          Não possuo uma adega muito grande e nem precisaria. Moro numa das maiores concentrações de boas lojas de vinhos do Rio de Janeiro – Itaipava. Dessas lojas, ainda virei a falar, futuramente, por que bem merecem. Mas, o fato é que meu estoque nunca ultrapassa umas trinta garrafas de vinhos escolhidos aqui e ali, durante viagens e garimpos diversos. Bem, residindo em meio a tantas adegas bem conduzidas, ao meu redor, por que gastar espaço em minha casa, se posso repor meus estoques em alguns minutos, com alguns dos melhores rótulos do Planeta? Depois, acabamos sempre consumindo nossa coleção, num ritmo que impede armazenamento prolongado.

          Assim, abriu-se espaço para que organizássemos uma “carta de vinhos” particular e manuscrita, como tudo mais o que faço. Nesse caderno dos prazeres, registrei esses dias minhas impressões sobre o potente Malbec riojano da Collovati: “Excelente! Acompanhando contra-filés argentinos (que estavam ótimos), sente-se o poder do terroir da pré-cordilheira”. Matei minhas saudades de La Rioja, aonde pretendo voltar, muito brevemente. Se possível, prevendo uma parada mais cuidadosa na região de Soñogasta, para conferir de perto este terroir que conseguiu originar um Malbec possivelmente superior a muitos daqueles produzidos na tradicional Mendoza, algumas centenas de quilômetros ao sul.



Paisagens de La Rioja, na Argentina – Imensos cactos colunares, sobre os quais somente faltam alguns daqueles linces que vemos, nas imagens de desertos americanos do norte; Infindáveis montanhas da Pré—Cordilheira, que foi erguida nos últimos cem milhões de anos, empurrada pelo soerguimento monumental dos Andes.



O riojano Collovati e nossa Carta de Vinhos particular





domingo, 21 de outubro de 2012

EVENTOS ENOGASTRONÔMICOS DE SUPREMA IMPORTÂNCIA 3 – MALBEC MENDONCINO MUITO INTERESSANTE E CARNE BRASILEIRA


          Recentemente retornado da segunda fase da Expedição Fitogeográfica 2012 (Ver blog http//:expedicaofitogeografica2012.blogspot), que me levara pelo sul do Brasil, Uruguay e Argentina, estava ansioso por testar novamente meu braseiro, não sei bem se movido por certa inveja das condições que atestara, naquelas terras, ou se pura e simplesmente motivado por alguns rótulos curiosos que trouxera na mala. De todo modo, para não ocasionar comparações inevitáveis, fiquei longe dos cortes de contra-filé – meus preferidos – e decidi queimar uma bem brasileira picanha da Bassi, que é das mais sinceras.
Consultando nosso estoque, achei por bem destampar um Monte Cinco - Malbec 2008, de Mendoza, que adquirira na Malambo (www.malamboalmacen.com.ar), que é uma wine store situada na calle Guatemala, esquina com Thames, no Palermo Soho, em Buenos Aires. Vinoteca y Almacén Criollo é como se intitula a Malambo, que vem disponibilizando excelentes rótulos de vinhos argentinos, em alternativa às marcas mais conhecidas.

          A missão, na Argentina, mais que no Uruguay, era identificar novos caminhos enológicos, como alternativas diferenciadas das grandes marcas, que são facilmente encontradas no mercado brasileiro, ainda que a preços por vezes salgados. Fora desta forma que, anos atrás, conhecêramos bodegas emergentes, como Navarro Correas (Mendoza) e NQN (de Neuquen – Patagônia). Por lá, os genuínos consumidores locais já as haviam consagrado, enquanto ainda eram raras ou inexistentes, em nossas terras. E assim foi feito, especialmente na Malambo, onde garimpamos alguns itens de certa “novidade”.

          No Uruguay, não tivéramos tanto trabalho, em face do universo bem menor de vinícolas e pelo fato de que por lá não faríamos muita força para encontrar “novidades” propriamente ditas. As lojas brasileiras dão muito pouca atenção àquele país – injustamente – e, portanto, nos contentávamos em buscar alguns excelentes vinhos, que muito raramente encontramos em nosso mercado. Já na Argentina, uma visita às lojas mais conhecidas não surpreende tanto, a não ser nos preços, um pouquinho – apenas um pouquinho – mais baratos que no Brasil: Grande parte dos rótulos já podem ser achados nas prateleiras daqui.

          Por isso, trouxemos alguns itens novos para nós, tais como o fascinante Monte Cinco - Malbec 2008, que foi aberto na tarde quente de Itaipava (!), tendo sido experimentado sozinho, poucos minutos após a retirada da rolha; acompanhando deliciosas linguiças de cordeiro, já bem arejado; e acompanhando a picanha, juntamente com palmitos frescos produzidos pelo amigo Rolf Dieringer e abobrinhas túrgidas, levados ambos ao braseiro, lado a lado.

          Surpreendeu pela safra 2008 e pela passagem por barris de carvalho, que lhe garantiu caráter marcante e preservou corpo pronunciado. Digo que surpreendeu pela safra, pois parecia ter sido recém engarrafado, de tão vivamente colorido pela fruta, cujos traços ainda ressaltavam na boca. Harmonizou-se à perfeição e não decepcionou, crescendo a cada instante, talvez devido à perda gradual de sua intensidade alcoólica, que era razoável: 14,4%!! Bem, tratava-se de um Malbec! Um tanto acostumado aos Tannats uruguaios e aos cortes incríveis que provara no Rio Grande do Sul, especialmente os Merlots + Cabernet Sauvignon, senti falta dos taninos agressivos, de que tanto gosto. Mas, não haverá como deixar de dar minha humilde aprovação ao Monte Cinco – Malbec 2008 desta tarde.

          Não sei se foi apenas coincidência, mas até a fonte murmurante dos Jardins do Templo Fitogeográfico e sua contínua e congestionada fila de passarinhos, que aguardavam sua vez para o banho, ficou mais bonita e com suas cores contratantes. Curiosamente, também ficaram mais pronunciados os cantos maviosos das cambaxirras, tico-ticos e sabiás-laranjeira, no silêncio da montanha. Também mais deslumbrante ficou a disputa entre uma saíra-amarela e um canário-da-terra, para ver quem se banhava primeiro, nas águas que fluíam mansamente da escultura da musa balinesa, na fonte... É, deve ter sido mesmo os 14,4% deste encorpado e inebriante Malbec.



quarta-feira, 9 de maio de 2012

ARTISTAS PRÉ-HISTÓRICOS NA CAATINGA


          Minha mãe Angelina Graeff, uma talentosa artista plástica, que se consagrou com seus óleos sobre tela e tanto me ensinou os caprichos das artes, separava rigorosamente os artistas verdadeiros dos simples artesãos. Artesanato, segundo ela, é atividade das mãos, desvinculada das leituras que a alma faz do ambiente, das emoções. A partir deste conceito, um fabricante de bolsas ou gamelas de madeira, que produz diversos de seus produtos, diariamente, pelo ofício da profissão, é um artesão e não necessariamente um artista. O artista é um “cavalo” da inspiração, um servo da compulsão pelo grafismo ou pela pura e simples expressão de seus sentimentos: Desenhando, cantando ou atuando, o artista dá vazão ao impulso incontrolável dessa expressividade; ele absolutamente não domina o ato de criar, de extravasar essa energia, que é quase metafísica.

          É claro que, em meio à maré de artesanatos, que observamos pelas estradas e por todos os cantos do território brasileiro, poderemos facilmente identificar artistas e, muito comumente, dali saem eles para as galerias e palcos, de todo o Planeta. Mas, não se pode confundir, de forma alguma, o espírito do artista com o ofício do artesanato. Em minha Expedição Fitogeográfica 2012, na sua primeira fase, que saiu do Rio de Janeiro e atravessou o Cerrado, a Caatinga e as Matas de Cocais, na Região Norte (ver o Blog expedicaofitogeografica2012.blogspot), além de tangenciar a esplendorosa Mata Atlântica do Nordeste, tive oportunidade de observar não somente vegetações, que eram meu foco, mas também as mais diversas expressões populares de artesanato... E também de ARTE! Mas, nada me causou mais deslumbramento que os grafismos de 12.000 anos, nas paredes de arenito da Serra da Capivara, no sul do Piauí. Mais precisamente, no Sítio das Pedrinhas Pintadas.

          O nome deste sítio arqueológico, um dentre incontáveis outros, protegidos pelo Parque Nacional da Serra da Capivara – Sítio das Pedrinhas Pintadas – me causava certa curiosidade, enquanto me dirigia para lá, no dia 22 de abril, junto com meu amigo Maxim Jaffe, que vem trabalhando na região, há muitos anos. Soava singelo demais, quase infantil, mas escondia um encontro milenar entre dois artistas: Aquele compulsivo pintor que ali vivera, mais de uma dúzia de milhares de anos antes, e este escrivinhador-desenhista, que ora vasculhava os sertões do país. Não pude esconder minha mais profunda emoção, quando me deparei com as obras de arte do Sítio das Pedrinhas Pintadas, na Serra da Capivara.

          Quantas vezes, em minha juventude, quando vivi meus mais intensos surtos criativos como desenhista, me vi acometido da mais incontrolável compulsão de rabiscar qualquer papel que encontrasse pela frente, sequioso por representar minhas ideias, minhas inspirações. Foram simplesmente incontáveis essas deliciosas experiências e meus cadernos escolares da época – os poucos que restaram – atestam o extravasamento desse vício criativo. Ainda hoje, quando reencontro colegas de colégio, dos anos setenta, escuto exclamação comum: “Tenho alguns desenhos seus, que você fez em meu caderno!” Era isso mesmo, a compulsão criativa, a ARTE que aflorava, através das mãos de um artista, precisando ser liberada imediatamente, em qualquer superfície que suportasse meus rabiscos compulsivos. E foi isso exatamente que vi, nos rabiscos do artista milenar, do Sítio das Pedrinhas Pintadas, fazendo-me perceber, em definitivo, que não eram artesãos aqueles homens que ali viviam, dezenas de milhares de anos atrás. Eram ARTISTAS sensíveis e, como tal, padeciam dos mesmos exatos impulsos que sempre moveram os humanos, desde sempre, quando o assunto era ARTE e não meramente o artifício.

          Essas inscrições rupestres, como são chamadas pelos pesquisadores, que lhes têm estudado, incessantemente, desde que foram descobertas, mais de quarenta anos atrás, em São Raimundo Nonato, onde está situado o Parque Nacional da Serra da Capivara, mostram exatamente o que qualquer artista pode pretender: Registram cenas, impressões e rituais de seus semelhantes, além de seus companheiros de sertão: Veados, emas, tigres-dentes-de-sabre, paleolhamas e uma infinidade de outros bichos, muitos deles já não mais existentes. Cenas de batalhas, rituais amorosos e até mesmo um beijo – talvez o primeiro já registrado pela arte gráfica (veja no blog da Expedição Fitogeográfica 2012) – são representações comuns nessa arte rupestre. Mas, enquanto antropólogos e arqueólogos se debatem sobre os objetivos desses grafismos, procurando desvendar o cotidiano dos paleoíndios da Serra da Capivara, não pude deixar de enxergá-los como o que efetivamente são: ARTE feita por ARTISTAS, distante de qualquer sentido artesanal útil.

          No Sítio das Pedrinhas Pintadas, ocorreu o mais explícito caso de compulsão artística, comprovando que aqueles homens eram exatamente como nós e sofriam dos mesmos arroubos artísticos de que hoje padecemos. O nome de Pedrinhas Pintadas advém do fato de que a superfície da pedra local não era arenito fino, como tantas outras, mas sim de um conglomerado de seixos, com inúmeros diâmetros, aprisionados por processos sedimentares, centenas de milhões de anos antes de terem servido de tela para o ARTISTA DAS PEDRINHAS PINTADAS. Evidentemente, deveriam ser péssimas para a pintura, tal como uma folha de papel higiênico grosseiro seria inadequado, para um desenhista atual. Mas, acometido de seu surto criativo, sequioso pela execução de seu grafismo, o ARTISTA DAS PEDRINHAS PINTADAS não teve alternativa, naquele instante: Pintou meticulosamente suas lindas figuras, sobre cada uma das minúsculas pedrinhas, deixando-nos um legado de grande valor.

          Em diversos sítios arqueológicos da Serra das Capivara, existem grafismos superpostos, mostrando que, depois de alguns milhares de anos, já rareavam superfícies para serem pintadas. Percebe-se que não era o desejo de conspurcar as inscrições antecedentes que causava tal superposição, mas pura e simplesmente a carência de telas novas. Nosso ARTISTA DAS PEDRINHAS PINTADAS deve ter passado por esta triste experiência: A carência de telas para se expressar, que se equipara com a falta de teatros, de livros, de palcos. Chegou mesmo a quebrar algumas dessas “pedrinhas”, de forma a originar superfícies razoavelmente planas, para lhe servirem de telas.

          Identificando-me com meu “colega” de 12.000 anos atrás, segui minha expedição e jamais esquecerei a oportunidade de ter me encontrado ali, no distante Parque Nacional da Serra da Capivara, com mais um desses incontáveis artistas brasileiros, de todos os tempos. Toda vez que me deparar com aquela compulsão incontrolável pelo desenho, seja em que superfície for, numa folha de caderno ou numa pedrinha qualquer, vou inevitavelmente me lembrar do Sítio das Pedrinhas Pintadas. Da ARTE do paleoíndio e de quanto a humanidade nunca muda, em toda sua complexa natureza.


Expressivas imagens, pintadas há coisa de 12.000 anos, na superfície lascada de pequenos seixos aprisionados em rochas de milhões de anos, na Serra da Capivara


Maxim Jaffe mostra o tamanho dessa ilustrações e das pedrinhas que as abrigam - Abaixo




Acima: O Sítio das Pedrinhas Pintadas, na Serra da Capivara
Abaixo: Um de meus desenhos, feitos na borda da folha de um caderno, durante um de meus surtos de arte.













quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

AS ORIGENS DO TEMPLO FITOGEOGRÁFICO

          Quando comecei a postar na internet fotografias de meus jardins, em Petrópolis, adotei a denominação Jardins do Templo Fitogeográfico, mais por uma licença poética do que por qualquer pretensão de criar alguma seita religiosa ou coisa parecida. Mas, foi inevitável: Muitos de meus amigos e conhecidos ficaram intrigados – com razão, creio eu. Pensei que isso se tornara uma oportunidade de contar sobre essa coisa da Fitogeografia e o que teriam meus jardins, afinal, a ver com um templo.
          Desde garoto, sempre fui muito idealista. Nasci com alguns sonhos, tal como um computador, que já é fornecido com o que os iniciados chamam: Programas Nativos. Isso quer dizer, tanto no caso da informática, quanto em minha cacholinha, que essas coisas tinham vindo de fábrica e, como tal, não seria razoável mexer. Afinal, não eram sonhos de ambição e poder, propriamente ditos. Era a idealização da profissão; das tarefas a serem realizadas (em busca de um mundo melhor, pensava); a maneira como encarar o amor; meus dotes artísticos; e, muito ligado a tudo isso, como deveria ser o ambiente à minha volta.
          Essa coisa do ambiente acabou se transformando num mote generalizado, impulsionando a luta ambientalista, à qual acabei aderindo, por já estar nessa correnteza desde quando a enchente começou. Quanto aos outros sonhos, jamais os deixei apagar, muito pelo contrário, transformei-os em projetos, metas de vida, que venho cumprindo, uma a uma, ao longo dos 53 anos que já vivi. Essa coisa de “como deveria ser o ambiente à minha volta” acabou sintetizando um princípio fundamental para mim: VIVER BEM É MORAR BEM.
          Durante anos, habitei casas alugadas, o que emprestava caráter transitório a tudo que fazia. Mesmo assim, tratava com imenso respeito esses lugares, vivenciando-os como se fossem meus. Isso, claro, produziu bons tratos que seguramente fizeram felizes muitos senhorios, mas que resultavam repetidos desgastes em meus sonhos, dentre eles, aquele que se personificava numa de minhas mais antigas manias: Minha COLEÇÃO DE PLANTAS.
          “O menino que, aos dez anos, não revela interesse em colecionar qualquer cousa instrutiva não evidencia espírito de pesquisa e nem promete ser indivíduo muito útil à humanidade”. Essas palavras não são minhas, mas de Frederico Carlos Hoehne, um dos mais célebres naturalistas que o Brasil já teve, e abrem o prefácio de sua famosa obra: Iconografia de Orchidaceas do Brasil, editada em 1949, pela Secretaria de Agricultura de São Paulo, onde Hoehne produziu inestimável contribuição ao conhecimento da flora brasileira. Minha coleção de plantas – orquídeas, principalmente – iniciou-se por volta de 1972, na casa de meus pais, em Ipanema, no Rio de Janeiro. Juntamente com meu amigo Flavio Coutinho Ferreira, interessei-me pelas florestas e pelas plantas tropicais. Improvisei um ripado, aos fundos da nossa casa e comecei a juntar minhas primeiras plantas.
          Nunca mais deixei de fazê-lo, tendo reiniciado diversas vezes, em função de “viagens de vida” que foram a faculdade (UFRRJ) e minha expressiva permanência no Mato Grosso, na década de 1980. Em cada coleção que empreendia, organizava mais minhas plantas, passando a conduzi-las como verdadeiros bancos de espécies, com diversas origens. Depois de ter passado pela presidência da Sociedade Brasileira de Bromélias-SBBr, no início dos anos de 2000, minha coleção se transformou definitivamente numa ferramenta de ciência, mostrando que Hoehne não estava errado, afinal.
          Enquanto presidi a SBBr, estreitei meus laços ainda mais com o mundo científico, através das conversas e de meu aprendizado com cientistas de peso, que colaboravam nas ações da entidade: Rafaela Forzza, que hoje coordena o Herbário do Jardim Botânico do Rio de Janeiro; Gustavo Martinelli, da mesma instituição, que coordena a lista das espécies da flora brasileira; além de pesquisadores de outras instituições ou para-institucionais que, assim como eu, davam seus esforços para o conhecimento e conservação das bromélias: Elton Leme, Ivo Penna, Luiz Felipe Nevares de Carvalho, Miriam Mendonça, Maria Esmeralda Demattê;  foram alguns desses nomes inspiradores.
          Minha coleção, desde então, tem contribuído com novidades e preciosas informações para a ciência: Espécies novas; dados ecológicos e geográficos; cultivares etc. Mais à frente, quando tratar especificamente dessa coleção, entrarei em detalhes sobre ela. A razão maior do texto de hoje é mesmo explicar como nasceu o Templo Fitogeográfico e o que essa coleção tem a ver com ele.
          Ocorre que, em 2009, comecei a dar vida, finalmente, ao projeto da MINHA CASA, deixando para trás a fase das contínuas mudanças de endereço... Meu e da COLEÇÃO DE PLANTAS! Meu grande amigo Arquiteto Pedro Quintanilha concebeu o projeto da casa e contribuiu muito para o equacionamento da ocupação do terreno. Não era uma mansão, mas nasceria com DNA caprichado: Enviei ao Pedro meus desenhos, aqueles que ilustravam o sonho de como seria o AMBIENTE dessa casa, produzindo, deste modo, a indivisível hibridação daquilo que eu pensava com o que um Arquiteto competente como ele seria capaz de transformar num projeto de verdade.
          Mergulhei fundo nesta realização e dediquei os seis últimos meses do período das obras à execução dos jardins... Os Jardins do Templo Fitogeográfico. Quero lembrar a muitos que me conhecem pouco que sou paisagista e, durante muitos anos, dediquei-me tornar realidade os sonhos jardinoculturais dos outros. Era chegada a minha vez! Com a ajuda de alguns funcionários, plantei as plantas da coleção diretamente em jardins projetados especificamente para abrigá-las. A partir de meus conhecimentos e experiências sobre os habitats dessas plantas, que eu visitara, Brasil afora, conseguimos dar vida a réplicas de algumas dessas paisagens botânicas, onde essas plantas cresciam, nos diversos ecossistemas do país.
          A essas alturas, eu já me encontrava imerso nos estudos e na organização do livro que venho preparando, desde 2006, que tem como tema exatamente a Fitogeografia. Por que existem algumas vegetações do Brasil e de países vizinhos? Como elas surgiram? Como elas são? Esses assuntos se transformaram na trilha de minha vida, nos recentes seis anos. Não haveria como enxergar os jardins de minha casa, assim como a coleção de plantas que neles encontrara abrigo definitivo, como algo diferente do que um aprendizado, uma contínua reflexão sobre tudo que venho tentando desvendar, nas paisagens do Brasil. Da janela de meu escritório, observo como orquídeas e bromélias se desenvolvem, em meio a massas de arbustos e arvoretas de nossa flora. Ao percorrer diariamente a floresta que replantei, aos fundos da casa, sobre uma encosta árida, desvendo relações entre as plantas nativas da coleção – que ali também estão – e suas árvores-suporte ou sobre os diversos substratos que a mata oferece.
          Enquanto escrevo e reviso meus textos, durante horas a fio, aprendo mais com as plantas, que me dão lições sobre sua ecologia. Princípios e hipóteses que estudo ou formulo são testados ali mesmo, na frente de minha janela, nos fundos de minha casa. Eis aí a origem dos Jardins do Templo Fitogeográfico: Fruto de sonhos inatos e vocações compreendidas; Inspirados nos naturalistas como Hoehne; Direcionados ao aprendizado e à reflexão, além da contemplação mais lúdica, é claro.


Acima: Da janela de minha cozinha, tem-se esta vista do Jardim que chamei de Jardins do Templo Fitogeográfico
Abaixo: A fonte foi projetada especialmente para que os pássaros viessem se banhar. Deu certo! Há filas diárias, entre saíras diversas, sabiás, tico-ticos, coleiros e uma infinidade de outras aves nativas. Quem realmente manda por ali é o João de Barro.



Abaixo: A fonte vista para a direção sudoeste. Dá para observar que inúmeras espécies se alojam em espaços únicos, que foram minuciosamente estudados para reproduzir seus habitats naturais

Abaixo: A casa é totalmente extrovertida, tirando partido do estilo de vida praticado em nosso condomínio.






Acima: As plantas surgem até nas calçadas do condomínio e são diariamente visitadas por vizinhos, que adoram vê-las em flor, como é o caso dessas bromélias Alcantarea vinicolor
Abaixo: A escadaria de pedra, que serve também como banco, é local que convida a sentar e se entreter com as plantas e as aves do Templo Fitogeográfico






Acima: Uma Neoregelia cruenta "variegata" que me foi presenteada por Pedro Nahoum, divide espaço com a marcgraviácea Norantea brasiliensis, planta que abundava nas restingas cariocas, até serem definitivamente transformadas em edifícios e shopping-centers
Abaixo: Em primeiro plano, Neoregelia sp. de Mangaratiba (RJ), sucedida por outra forma de Neoregelia cruenta "variegata" e Norantea brasiliensis. Notar Encyclia oncidioides - sem flores - entre as norantéas.



domingo, 5 de fevereiro de 2012

EVENTOS ENO-GASTRONÔMICOS DE SUPREMA IMPORTÂNCIA 2 - CONTRA-FILÉ ARGENTINO E TANNAT URUGUAIO

          Manhã de sol simplesmente deslumbrante, em Petrópolis. No período entre os dias 15 de janeiro e 15 de fevereiro de cada ano, nossa região experimenta quase invariavelmente seu veranico. Ele pode ter uma semana ou até mesmo, nos casos mais extremos, ocupar um mês inteiro, o que não vem acontecendo este ano. Sol e céu azul são tudo o que você verá, durante esses dias. Sorte nossa que Itaipava tem um dos melhores climas do país e, assim, não deixa de bater uma brisa leve e agradável, que nos transporta a paisagens já vistas, na Argentina ou no Uruguai. Do Uruguai veio o vinho que abrimos hoje – Don Pascual Tannat reserva, safra 2011.
          Da grelha, saltaram uns bifões de contra-filé argentino, emoldurados com uma capa de gordura incorruptivelmente branca, cortados com três dedos de largura. Procedência: Província de Buenos Ayres. Não tem muito segredo, a não ser ficar ali, muito atento, cuidando dos petiscos, de forma a assá-los baixo, num braseiro alucinadamente quente, começando pelo lado da gordura (eles se equilibram sobre ela, por conta de sua espessura, digamos assim, exagerada). Desculpem-me os criadores de gado zebuíno, de cuja raça detemos hoje o maior rebanho do Planeta, mas nada poderá rivalizar com a carne do Cone Sul, produzida a partir de raças européias.
          Na mesa, o vinho uruguaio! Primeira surpresa foi a rolha que, poucos minutos após destampada, exibia coloração exatamente idêntica àquela que muitos de nós conhecemos, nos bons tempos: Picolé de uva, em pleno verão da praia de Ipanema. Sim, falo daquele “uvita” ou “ki-uva”, que imaginávamos artificial, devido àquela cor violeta profunda e homogênea. Pois ali estava ela, a cor UVITA, na pontinha da rolha, prometendo sensações originais. E elas vieram, a começar pelos primeiros aromas testados no copo, entre o vai e vem cozinha-churrasqueira; churrasqueira-cozinha. Eram densos e prolongados, mesmo com a taça ainda quieta.
          A primeira degustação foi prazerosa e se fez acompanhar de intensa liberação de aromas de frutas. Claro, um vinho novo como esse poderia não ser lá tudo de bom, deixando sobressair a fruta... mas foi! Enquanto enfrentávamos os gordos nacos do contra-filé dos hermanos (delicioso, mas ainda creio mais nos gaúchos), descobríamos evolução excepcional no vinho do Establecimiento Juanicó. Taninos fortes cortavam feito faca no churrasco, enquanto o corpo se pronunciava vagarosamente. Não chegou ao corpo dos Malbec justa-andinos, mas permaneceu razoavelmente na boca. A coloração dos vinhos jovens é deliciosamente plástica e alegra a bebida.
          Os bons vinhos da região próxima a Montevideo se devem ao encontro do clima temperado do Prata e aos solos herdados da longa degradação dos granitos-rosa, cujos velhos matacões ainda podem ser divisados na paisagem, quando se cruza a Ruta no05, a caminho de Rivera. Fica a dica da aventura eno-gastronômica deste domingo: Vinhos uruguaios SIM. Do que se faz por lá, não posso negar, minha grande preferência é pela variedade Tannat, que alguns poderão chamar de Harriague. Novos como o nosso de hoje ou remontando à safra lendária de 2002, eles sempre surpreenderão. Mas, de qualquer forma priorizo os Reserva, que ganham forma, ao passar pelo carvalho.


sábado, 21 de janeiro de 2012

EVENTOS ENO-GASTRONÔMICOS DE SUPREMA IMPORTÂNCIA – COSTELETAS DE CORDEIRO COM VINHO PATAGÔNICO

          The nearest the bone, the sweetest the meat... Essa é uma das grandes verdades que todo churrasqueiro conhece bem: Quanto mais próxima do osso, mais deliciosa é a carne. Daí a gauchada ser famosa pela sua preferência, na República Sul-Rio-Grandense – Costela gorda cheia de graxa. Me lembro bem dum velho versinho do cancioneiro popular gaudério: “Duas coisas deixam o gaúcho de pé; Carne gorda com farinha e carinho de mulher”. Fato é que o almoço de hoje – sábado, 21 de janeiro de 2012 – foi exemplo típico dessa sabedoria tradicional: Costeletas de cordeiro na grelha, regadas a vinho tinto Malbec, lá da Patagônia.
          As costeletas foram inspiradas num delicioso momento, recentemente vivido, no magnífico restaurante Puerto Del Toro, em Caxias do Sul, quando também apreciamos a mesma combinação. Como sempre acontece, queríamos repetir a dose. Às vezes, isso não dá certo e a gente se frustra, pois cada ocasião é uma ocasião. Desta vez, porém, não teve errada. Estou até agora sentindo o imenso prazer de ter pilotado, uma vez mais, minha churrasqueira e de ter mirado numa garrafa de Malma (Bodega – NQN) – Malbec Gran-Reserva safra 2006 – que jazia quietinha na adega, fazia tempo.
          As costeletas vêm naquele corte gourmet, no qual os ossinhos da costela ficam saltando como palitinhos de um picolé, coisa que acaba sendo muito útil, nos dedos sequiosos e sem a menor classe do assador. Depois de uns goles de semelhante néctar patagônico, não há apreciador que não se renda à tentação de segurar naqueles “palitinhos” providenciais e comprovar a máxima que abriu este texto: Ali se encontra a melhor parte do churrasco. Mas, temperadas unicamente com sal grosso, as costeletas de Dom Pedrito, na Campanha Gaúcha, não deixaram de marcar presença pela maciez da carne, protegido que fora, durante o assado, pelos ossos, de um lado, e pela capa gordurosa, de outro.
          Quanto ao vinho, acabou por confirmar o que era certo: Malbecs patagônicos são a melhor bebida para acompanhar pratos como esse. Isso ficara patente em San Martin de Los Andes, na Patagônia, onde comemos prato assemelhado, igualmente regado aos vinhos de Neuquen. Foi por ali, em 2008, que ficamos conhecendo a vinicultura daquela região, especialmente da Bodega NQN, que hoje já se encontra bem difundida entre nós. A região de Neuquen tem uma característica que lhe confere terroir singular, em meu ponto de vista: Situada na faixa desértica argentina, que se espreme ao longo dos Andes Orientais, conta com climas bem mais amenos do que Mendoza. Vêm daí vinhos mais redondos, sem perder aquele tanino vigoroso da Argentina.
          A experiência de hoje foi gratificante e sempre nos surpreende a capacidade de manutenção da coloração viva dos vinhos Malbec pré-andinos, ainda mais após a passagem pelo carvalho, seguida de expressiva guarda (Estamos em 2012). No copo, evoluiu bem e parecia se fundir à comida, como se ambos tivessem sido gerados juntos, desde sempre. Em suas bordas, a taça mostrava aqueles “arcos da lapa”, como costumo chamar os resíduos viscosos da bebida, algum tempo após a movimentação e o pousio. Não consigo deixar de enxergar nesse corpo razoavelmente pronunciado de certos vinhos a figura mais representativa da paisagem antiga carioca. Agora, é descansar um pouco dessa viagem gaúcha-patagônica, prosseguir na revisão de meu livro e lembrar do festim.