Imagino que alguns de meus amigos receberão este texto com quatro pedras nas mãos, vendo em mim uma versão atualizada daqueles militares reformados que, nos anos de 1980 (missão cumprida), gastavam seu tempo jogando vôlei na Praia de Ipanema e diziam: -“Eu pago meus impostos e ficam esses vagabundos, que não têm nada para fazer, assaltando e pedindo dinheiro nas ruas...” Eram uns reacionários, evidentemente, com aquela sensação de que eram os “caras bonzinhos” e que, uma vez que pagavam seus impostos (será?), podiam apontar o dedo para as mazelas da sociedade, requerendo “imediato cumprimento das regras”. Juro para vocês que não sou o caso. Aliás, isso ficará explícito, pela minha abordagem, na qual poderá concluir, que sou tão somente um cara comum, que cresceu, amadureceu e decidiu rejeitar qualquer rótulo direcional, em minhas convicções políticas – nem esquerda, nem direita... O JUSTO apenas!
Lembro-me bem de uma acalorada discussão, entre meu querido amigo-irmão Paulo Raguenet e eu, por volta de 1984, sobre a figura política de Leonel Brizola, que fora um dos mais célebres exilados brasileiros, durante a ditadura, e que voltara ao país, retomando sua carreira política, tornando-se Governador do Rio de Janeiro, com ares de presidenciável. Eu era brizolista empolgado e Paulo quase deixou de ser meu amigo, por conta disso. Conto isso, sem medo das caras feias dos mais conservadores, apenas para mostrar uma evolução de fatos bastante lógica e barrar os impulsos sectários de alguns outros, digamos assim, esquerdistas da atualidade, que, lendo este blog, já estavam a juntar paus e pedras, antevendo um “papo de militar da rede de vôlei da praia”.
A dura conversa, travada numa festa, naquela época, quase afastou o Paulo de mim, não fosse a intervenção de alguns amigos mais arejados, que acabaram com o papo de botequim, utilizando engraçadas técnicas de “deixa-disso”. O cerne da discussão eram justamente as políticas liberalizantes de Leonel Brizola, com referência às classes menos favorecidas do Rio, que nós, da Zona Sul, enxergávamos sob ótica distorcida como um potencial monte de criminosos, que o Governador tentava proteger, de algum modo. A garotada mais envernizada, da beira da praia, pensava que Brizola estava “facilitando a vida dos marginais”, quando decretou a proibição da subida dos morros pela Polícia, para evitar os níveis de violência que produziam mortes indiscriminadas de meliantes e simples moradores das favelas.
O que a história conta, nos dias de hoje, é que se chocava, naquele instante, o Ovo da Serpente da sociedade violenta que vivemos hoje, para apropriar-me do título do filme marcante de Ingmar Bergman, de 1977, tendo no elenco David Carradine e Liv Ullmann. O Ovo da Serpente tratava da gestação silenciosa do Nazismo, na Alemanha Pré-Segunda Guerra, através de teorias conspiratórias, muito imaginativas. Bem, não deixei de continuar admirando boa parte dos postulados de Brizola, sob os quais, aliás, nasceu a carreira política da atual Presidente da República, que era do PDT. Mas, de certa forma, ainda que não concordasse com as invasões mortíferas da Polícia, da forma como era feita, nos morros cariocas, da década de 1980, obrigo-me a identificar ali um erro fundamental, em nossa história recente: A perda da AUTORIDADE.
Naquela época, um jovem estudante da Universidade Rural, agitado pólo de agitação esquerdista, somente fora capaz de enxergar os PRÓ da política frouxa do Governador, até por que nossa Polícia conseguia ser ainda pior do que a de hoje em dia. Conhecia muita gente pobre, de comunidades e bairros periféricos, e entendia que o mal não obrigatoriamente morava nos morros, assim como também não era cada menino da Zona Sul, automaticamente, um futuro cidadão exemplar, pertencente a uma casta abençoada. Mas, imaturo que era, não percebia os CONTRA da decisão pura e simples de não subir nos morros e nada mais fazer, para reatar com a ORDEM, sem perder a AUTORIDADE. Afinal, essas duas palavrinhas significavam tudo de careta que se poderia ver no pensamento político pós-ditadura. Que ledo engano!
O tempo passou e, dias atrás, recebendo em casa uma amiga daqueles tempos da Rural, que vive nos Estados Unidos da América (USA), há quase trinta anos, acabei de perceber o quanto fomos inocentes, com nossas idéias esquerdizantes, nos tempos de Brizola. Cristina Neves mora em Topeka, no Kansas, e nos relatava sobre a região e a cidade em que mora, dizendo-me muito adaptada (Casou por lá e tem uma linda filha, com os mesmos 18 anos da minha). Contava-nos que as pessoas são OBRIGADAS, por lei, a andar com seus cães na coleira; Que são obrigados a PARAR nos cruzamentos, onde existem placas de PARE (Como aqui há também!); Que não podem fazer “puxadinhos” em suas residências; Que são obrigados a PARAR nas faixas de pedestres; Que não podem ultrapassar ônibus escolares, quando estão parados, pegando ou deixando crianças... Enfim, um monte de regras que (Incrível!) TODOS CUMPREM, em seu dia a dia.
Mas, o mais inacreditável de tudo isso, que já virou folclore, contado pelos milhares de brasileiros, que viajam aos USA, retornando maravilhados (Mas que não o fazem em sua própria terra!), surgiu quando lhe perguntei QUEM fiscalizava o cumprimento de tantas regras: No caso do trânsito, todos sabem, sempre aparece um Policial (incorruptível) para aplicar uma bela MULTA nos infratores – SEM MUITA CONVERSA! Mas, no caso das posturas urbanas... Cristina nem sequer sabia quem eram os agentes fiscais! “Sabe que nunca reparamos nisso? É que TODOS CUMPREM AS LEIS E DISPOSIÇÕES!” E, quando alguém resolve dar uma “deslizada”, algum vizinho aparece na janela e chama atenção... O (quase) transgressor, então, imediatamente corrige seus atos. A AUTORIDADE encontra-se impressa, estampada na mente dos cidadãos.
Aqui em nossa linda terrinha, há muito, rompeu a casca do ovo a serpente da desordem e do caos, gestada por anos te doce tolerância. “Vamos ter bom senso! Não dá para levar tudo a ferro e fogo...” E assim prosperou a sociedade tolerante-leniente em que vivemos, repleta de grandes crimes, incensados pela tolerância aos delitos de menor gravidade. A sensação de impunidade, não se pode duvidar, estimula a quebra do pacto social da civilização. Todo mundo acha que a multa ou a sentença judicial são sempre “injustas”, ora por que “não precisava ser tão dura”, ora por que atingiram a nós ou algum amigo. Mas, devemos nos recordar do que dizia Goethe: “Prefiro a injustiça à desordem”.
Ainda existe outra diametral diferença entre as sociedades americana e brasileira, diferença esta que é irmã bastarda da impunidade: A violência, que nos impede, aqui na doce terrinha, de chamar atenção de nossos concidadãos pelo que de errado estejam a fazer – furar um sinal, não respeitar uma faixa de pedestres etc. Falo das reações usualmente violentas daqueles que, chamados ao seu dever, se vêem ofendidos em sua honra ou “masculinidade” e capazes são de responder aos socos ou à bala à reprimenda. Tudo resultado da DESORDEM, tudo resultado da IMPUNIDADE, tudo sinais da FALTA DE AUTORIDADE. Leis, nos as temos aos montes e das melhores. Falta-nos determinação de cumpri-las, a qualquer custo, pois a lei serve mesmo para isso: Para protegermo-nos uns das vontades irrefreáveis dos outros.
Não penso hoje que Brizola tivesse muitas alternativas, nos 1980s, para por amarras na brutalidade de uma Polícia violenta e fratricida, que subia os morros com a civilidade de um tanque de guerra. Mas, sim, gestava-se ali, com certeza, através do perigoso precedente da tolerância, o OVO DA SERPENTE da desordem que hoje nos aniquila o ânimo de nos transformarmos definitivamente num país de PRIMEIRO MUNDO.