Minha mãe Angelina Graeff, uma talentosa artista plástica, que se consagrou
com seus óleos sobre tela e tanto me ensinou os caprichos das artes, separava
rigorosamente os artistas verdadeiros dos simples artesãos. Artesanato, segundo
ela, é atividade das mãos, desvinculada das leituras que a alma faz do
ambiente, das emoções. A partir deste conceito, um fabricante de bolsas ou
gamelas de madeira, que produz diversos de seus produtos, diariamente, pelo
ofício da profissão, é um artesão e não necessariamente um artista. O artista é
um “cavalo” da inspiração, um servo da compulsão pelo grafismo ou pela pura e
simples expressão de seus sentimentos: Desenhando, cantando ou atuando, o
artista dá vazão ao impulso incontrolável dessa expressividade; ele
absolutamente não domina o ato de criar, de extravasar essa energia, que é
quase metafísica.
É claro que, em meio à maré de artesanatos,
que observamos pelas estradas e por todos os cantos do território brasileiro,
poderemos facilmente identificar artistas e, muito comumente, dali saem eles para
as galerias e palcos, de todo o Planeta. Mas, não se pode confundir, de forma
alguma, o espírito do artista com o ofício do artesanato. Em minha Expedição
Fitogeográfica 2012, na sua primeira fase, que saiu do Rio de Janeiro e
atravessou o Cerrado, a Caatinga e as Matas de Cocais, na Região Norte (ver o
Blog expedicaofitogeografica2012.blogspot),
além de tangenciar a esplendorosa Mata Atlântica do Nordeste, tive oportunidade
de observar não somente vegetações, que eram meu foco, mas também as mais diversas
expressões populares de artesanato... E também de ARTE! Mas, nada me causou
mais deslumbramento que os grafismos de 12.000 anos, nas paredes de arenito da
Serra da Capivara, no sul do Piauí. Mais precisamente, no Sítio das Pedrinhas
Pintadas.
O nome deste sítio arqueológico, um dentre
incontáveis outros, protegidos pelo Parque Nacional da Serra da Capivara –
Sítio das Pedrinhas Pintadas – me causava certa curiosidade, enquanto me
dirigia para lá, no dia 22 de abril, junto com meu amigo Maxim Jaffe, que vem trabalhando na região, há muitos anos. Soava
singelo demais, quase infantil, mas escondia um encontro milenar entre dois
artistas: Aquele compulsivo pintor que ali vivera, mais de uma dúzia de
milhares de anos antes, e este escrivinhador-desenhista, que ora vasculhava os
sertões do país. Não pude esconder minha mais profunda emoção, quando me
deparei com as obras de arte do Sítio das Pedrinhas Pintadas, na Serra da
Capivara.
Quantas vezes, em minha juventude, quando
vivi meus mais intensos surtos criativos como desenhista, me vi acometido da
mais incontrolável compulsão de rabiscar qualquer papel que encontrasse pela
frente, sequioso por representar minhas ideias, minhas inspirações. Foram
simplesmente incontáveis essas deliciosas experiências e meus cadernos
escolares da época – os poucos que restaram – atestam o extravasamento desse
vício criativo. Ainda hoje, quando reencontro colegas de colégio, dos anos
setenta, escuto exclamação comum: “Tenho alguns desenhos seus, que você fez em
meu caderno!” Era isso mesmo, a compulsão criativa, a ARTE que aflorava,
através das mãos de um artista, precisando ser liberada imediatamente, em
qualquer superfície que suportasse meus rabiscos compulsivos. E foi isso
exatamente que vi, nos rabiscos do artista milenar, do Sítio das Pedrinhas
Pintadas, fazendo-me perceber, em definitivo, que não eram artesãos aqueles
homens que ali viviam, dezenas de milhares de anos atrás. Eram ARTISTAS
sensíveis e, como tal, padeciam dos mesmos exatos impulsos que sempre moveram
os humanos, desde sempre, quando o assunto era ARTE e não meramente o
artifício.
Essas inscrições rupestres, como são
chamadas pelos pesquisadores, que lhes têm estudado, incessantemente, desde que
foram descobertas, mais de quarenta anos atrás, em São Raimundo Nonato, onde
está situado o Parque Nacional da Serra da Capivara, mostram exatamente o que
qualquer artista pode pretender: Registram cenas, impressões e rituais de seus
semelhantes, além de seus companheiros de sertão: Veados, emas,
tigres-dentes-de-sabre, paleolhamas e uma infinidade de outros bichos, muitos
deles já não mais existentes. Cenas de batalhas, rituais amorosos e até mesmo
um beijo – talvez o primeiro já registrado pela arte gráfica (veja no blog da
Expedição Fitogeográfica 2012) – são representações comuns nessa arte rupestre.
Mas, enquanto antropólogos e arqueólogos se debatem sobre os objetivos desses
grafismos, procurando desvendar o cotidiano dos paleoíndios da Serra da
Capivara, não pude deixar de enxergá-los como o que efetivamente são: ARTE
feita por ARTISTAS, distante de qualquer sentido artesanal útil.
No Sítio das Pedrinhas Pintadas, ocorreu o
mais explícito caso de compulsão artística, comprovando que aqueles homens eram
exatamente como nós e sofriam dos mesmos arroubos artísticos de que hoje
padecemos. O nome de Pedrinhas Pintadas advém do fato de que a superfície da
pedra local não era arenito fino, como tantas outras, mas sim de um
conglomerado de seixos, com inúmeros diâmetros, aprisionados por processos
sedimentares, centenas de milhões de anos antes de terem servido de tela para o
ARTISTA DAS PEDRINHAS PINTADAS. Evidentemente, deveriam ser péssimas para a
pintura, tal como uma folha de papel higiênico grosseiro seria inadequado, para
um desenhista atual. Mas, acometido de seu surto criativo, sequioso pela
execução de seu grafismo, o ARTISTA DAS PEDRINHAS PINTADAS não teve
alternativa, naquele instante: Pintou meticulosamente suas lindas figuras,
sobre cada uma das minúsculas pedrinhas, deixando-nos um legado de grande
valor.
Em diversos sítios arqueológicos da Serra
das Capivara, existem grafismos superpostos, mostrando que, depois de alguns
milhares de anos, já rareavam superfícies para serem pintadas. Percebe-se que
não era o desejo de conspurcar as inscrições antecedentes que causava tal
superposição, mas pura e simplesmente a carência de telas novas. Nosso ARTISTA
DAS PEDRINHAS PINTADAS deve ter passado por esta triste experiência: A carência
de telas para se expressar, que se equipara com a falta de teatros, de livros,
de palcos. Chegou mesmo a quebrar algumas dessas “pedrinhas”, de forma a
originar superfícies razoavelmente planas, para lhe servirem de telas.
Identificando-me com meu “colega” de 12.000
anos atrás, segui minha expedição e jamais esquecerei a oportunidade de ter me
encontrado ali, no distante Parque Nacional da Serra da Capivara, com mais um
desses incontáveis artistas brasileiros, de todos os tempos. Toda vez que me
deparar com aquela compulsão incontrolável pelo desenho, seja em que superfície
for, numa folha de caderno ou numa pedrinha qualquer, vou inevitavelmente me
lembrar do Sítio das Pedrinhas Pintadas. Da ARTE do paleoíndio e de quanto a
humanidade nunca muda, em toda sua complexa natureza.
Expressivas imagens, pintadas há coisa de 12.000 anos, na superfície lascada de pequenos seixos aprisionados em rochas de milhões de anos, na Serra da Capivara
Maxim Jaffe mostra o tamanho dessa ilustrações e das pedrinhas que as abrigam - Abaixo
Acima: O Sítio das Pedrinhas Pintadas, na Serra da Capivara
Abaixo: Um de meus desenhos, feitos na borda da folha de um caderno, durante um de meus surtos de arte.
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