quarta-feira, 9 de maio de 2012

ARTISTAS PRÉ-HISTÓRICOS NA CAATINGA


          Minha mãe Angelina Graeff, uma talentosa artista plástica, que se consagrou com seus óleos sobre tela e tanto me ensinou os caprichos das artes, separava rigorosamente os artistas verdadeiros dos simples artesãos. Artesanato, segundo ela, é atividade das mãos, desvinculada das leituras que a alma faz do ambiente, das emoções. A partir deste conceito, um fabricante de bolsas ou gamelas de madeira, que produz diversos de seus produtos, diariamente, pelo ofício da profissão, é um artesão e não necessariamente um artista. O artista é um “cavalo” da inspiração, um servo da compulsão pelo grafismo ou pela pura e simples expressão de seus sentimentos: Desenhando, cantando ou atuando, o artista dá vazão ao impulso incontrolável dessa expressividade; ele absolutamente não domina o ato de criar, de extravasar essa energia, que é quase metafísica.

          É claro que, em meio à maré de artesanatos, que observamos pelas estradas e por todos os cantos do território brasileiro, poderemos facilmente identificar artistas e, muito comumente, dali saem eles para as galerias e palcos, de todo o Planeta. Mas, não se pode confundir, de forma alguma, o espírito do artista com o ofício do artesanato. Em minha Expedição Fitogeográfica 2012, na sua primeira fase, que saiu do Rio de Janeiro e atravessou o Cerrado, a Caatinga e as Matas de Cocais, na Região Norte (ver o Blog expedicaofitogeografica2012.blogspot), além de tangenciar a esplendorosa Mata Atlântica do Nordeste, tive oportunidade de observar não somente vegetações, que eram meu foco, mas também as mais diversas expressões populares de artesanato... E também de ARTE! Mas, nada me causou mais deslumbramento que os grafismos de 12.000 anos, nas paredes de arenito da Serra da Capivara, no sul do Piauí. Mais precisamente, no Sítio das Pedrinhas Pintadas.

          O nome deste sítio arqueológico, um dentre incontáveis outros, protegidos pelo Parque Nacional da Serra da Capivara – Sítio das Pedrinhas Pintadas – me causava certa curiosidade, enquanto me dirigia para lá, no dia 22 de abril, junto com meu amigo Maxim Jaffe, que vem trabalhando na região, há muitos anos. Soava singelo demais, quase infantil, mas escondia um encontro milenar entre dois artistas: Aquele compulsivo pintor que ali vivera, mais de uma dúzia de milhares de anos antes, e este escrivinhador-desenhista, que ora vasculhava os sertões do país. Não pude esconder minha mais profunda emoção, quando me deparei com as obras de arte do Sítio das Pedrinhas Pintadas, na Serra da Capivara.

          Quantas vezes, em minha juventude, quando vivi meus mais intensos surtos criativos como desenhista, me vi acometido da mais incontrolável compulsão de rabiscar qualquer papel que encontrasse pela frente, sequioso por representar minhas ideias, minhas inspirações. Foram simplesmente incontáveis essas deliciosas experiências e meus cadernos escolares da época – os poucos que restaram – atestam o extravasamento desse vício criativo. Ainda hoje, quando reencontro colegas de colégio, dos anos setenta, escuto exclamação comum: “Tenho alguns desenhos seus, que você fez em meu caderno!” Era isso mesmo, a compulsão criativa, a ARTE que aflorava, através das mãos de um artista, precisando ser liberada imediatamente, em qualquer superfície que suportasse meus rabiscos compulsivos. E foi isso exatamente que vi, nos rabiscos do artista milenar, do Sítio das Pedrinhas Pintadas, fazendo-me perceber, em definitivo, que não eram artesãos aqueles homens que ali viviam, dezenas de milhares de anos atrás. Eram ARTISTAS sensíveis e, como tal, padeciam dos mesmos exatos impulsos que sempre moveram os humanos, desde sempre, quando o assunto era ARTE e não meramente o artifício.

          Essas inscrições rupestres, como são chamadas pelos pesquisadores, que lhes têm estudado, incessantemente, desde que foram descobertas, mais de quarenta anos atrás, em São Raimundo Nonato, onde está situado o Parque Nacional da Serra da Capivara, mostram exatamente o que qualquer artista pode pretender: Registram cenas, impressões e rituais de seus semelhantes, além de seus companheiros de sertão: Veados, emas, tigres-dentes-de-sabre, paleolhamas e uma infinidade de outros bichos, muitos deles já não mais existentes. Cenas de batalhas, rituais amorosos e até mesmo um beijo – talvez o primeiro já registrado pela arte gráfica (veja no blog da Expedição Fitogeográfica 2012) – são representações comuns nessa arte rupestre. Mas, enquanto antropólogos e arqueólogos se debatem sobre os objetivos desses grafismos, procurando desvendar o cotidiano dos paleoíndios da Serra da Capivara, não pude deixar de enxergá-los como o que efetivamente são: ARTE feita por ARTISTAS, distante de qualquer sentido artesanal útil.

          No Sítio das Pedrinhas Pintadas, ocorreu o mais explícito caso de compulsão artística, comprovando que aqueles homens eram exatamente como nós e sofriam dos mesmos arroubos artísticos de que hoje padecemos. O nome de Pedrinhas Pintadas advém do fato de que a superfície da pedra local não era arenito fino, como tantas outras, mas sim de um conglomerado de seixos, com inúmeros diâmetros, aprisionados por processos sedimentares, centenas de milhões de anos antes de terem servido de tela para o ARTISTA DAS PEDRINHAS PINTADAS. Evidentemente, deveriam ser péssimas para a pintura, tal como uma folha de papel higiênico grosseiro seria inadequado, para um desenhista atual. Mas, acometido de seu surto criativo, sequioso pela execução de seu grafismo, o ARTISTA DAS PEDRINHAS PINTADAS não teve alternativa, naquele instante: Pintou meticulosamente suas lindas figuras, sobre cada uma das minúsculas pedrinhas, deixando-nos um legado de grande valor.

          Em diversos sítios arqueológicos da Serra das Capivara, existem grafismos superpostos, mostrando que, depois de alguns milhares de anos, já rareavam superfícies para serem pintadas. Percebe-se que não era o desejo de conspurcar as inscrições antecedentes que causava tal superposição, mas pura e simplesmente a carência de telas novas. Nosso ARTISTA DAS PEDRINHAS PINTADAS deve ter passado por esta triste experiência: A carência de telas para se expressar, que se equipara com a falta de teatros, de livros, de palcos. Chegou mesmo a quebrar algumas dessas “pedrinhas”, de forma a originar superfícies razoavelmente planas, para lhe servirem de telas.

          Identificando-me com meu “colega” de 12.000 anos atrás, segui minha expedição e jamais esquecerei a oportunidade de ter me encontrado ali, no distante Parque Nacional da Serra da Capivara, com mais um desses incontáveis artistas brasileiros, de todos os tempos. Toda vez que me deparar com aquela compulsão incontrolável pelo desenho, seja em que superfície for, numa folha de caderno ou numa pedrinha qualquer, vou inevitavelmente me lembrar do Sítio das Pedrinhas Pintadas. Da ARTE do paleoíndio e de quanto a humanidade nunca muda, em toda sua complexa natureza.


Expressivas imagens, pintadas há coisa de 12.000 anos, na superfície lascada de pequenos seixos aprisionados em rochas de milhões de anos, na Serra da Capivara


Maxim Jaffe mostra o tamanho dessa ilustrações e das pedrinhas que as abrigam - Abaixo




Acima: O Sítio das Pedrinhas Pintadas, na Serra da Capivara
Abaixo: Um de meus desenhos, feitos na borda da folha de um caderno, durante um de meus surtos de arte.













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