O salão estava completamente lotado. Mais de seiscentas
pessoas se aboletavam num clube da minúscula e atraente cidade baiana de
Jaguaripe, no estuário do rio do mesmo nome, ao sul da ilha de Itaparica, no
Recôncavo Baiano. Chegamos de barco, único meio de transporte viável naquela
região, vindos da Ponta do Garcês, que era o coração da questão que se
discutiria ali, naquele verdadeiro circo de operações que a gigantesca
Petrobras armara, no diminuto e bucólico vilarejo. Num imenso telão,
alternavam-se gloriosas imagens que ufanavam a poderosa empresa petrolífera,
evocando todos os supostos benefícios promovidos por ela ao Brasil: Modernos petroleiros
singrando os mares, abarrotados de óleo; Monumentais plataformas esbaforindo
fogos progressistas de suas torres; Oleodutos que seguiam ao infinito. Tudo
isso intercalado com imagens de gente humilde sorridente e feliz, além de
tartarugas marinhas e florestas verdejantes, bem ao estilo do governo petista,
que ainda acelerava em sua escalada de fortalecimento.
Nosso anfitrião Sérgio
Tourinho, experiente advogado e ex-deputado baiano, ao meu lado,
esbravejava furibundo que aquilo era abuso de poder econômico e, sobretudo, uma
atitude ilegal, no âmbito de uma audiência pública, na qual se submeteria um
projeto dessa mesma empresa: Um gasoduto que ligaria as plataformas de
extração, situadas ao largo de Morro de São Paulo, alguns quilômetros dali, à localidade
de São Francisco do Conde, no fundo da Baía de Todos os Santos, onde o gás seria
industrializado. Eu também pensava assim, mas já esperava este golpe baixo,
havia alguns dias. Afinal, não se passavam dez minutos, sem que as emissoras de
TV baianas divulgassem vídeos semelhantes, enaltecendo o valor da Petrobras
para o futuro da Bahia.
Mas, não havia como deixar de manter a calma. O ambiente era
tenso para a petrolífera, não apenas pela nossa presença, que já havia sido
detectada pela sua “inteligência”, através de sua rede de informantes, mas
também por que a esmagadora maioria da audiência era composta por pescadores e
caiçaras, apavorados com as possíveis consequências daquele empreendimento
sobre sua fonte de sustento – a pesca. A Petrobras, na verdade, se preparara
para o enfrentamento “no mar”, trazendo complexos estudos oceanográficos que,
como seria de imaginar, comprovariam não haver nenhuma ameaça à ecologia
costeira. Tudo estava pronto para silenciar os pobres pescadores, inclusive com
os recursos promissoramente nababescos, que seriam derramados para compensar os
“pequenos transtornos ocasionados pelas obras”.
Só que, para o azar da multinacional estatal, eles não
haviam se preparado para combater “em terra”. Acontece que o tal gasoduto atravessaria
de cheio a Ponta do Garcês, um belíssimo e bem conservado conjunto de restingas
arenosas, que fecham a barra do rio Jaguaripe, quase tocando a localidade de
Cacha Pregos, no sul da ilha de Itaparica. Mal sabiam da carta que possuíamos
na manga, que viraria o jogo, na discussão do megalômano projeto
desenvolvimentista. “Em terra”, nossa munição era mais poderosa. A história de
nossa participação neste caso começara bem antes, em 2001, e tivera como
motivação interesses diametralmente inversos aos da Petrobras. Envolviam a
conservação da natureza da Ponta do Garcês, como se verá, a seguir.
Da capa do Diagnóstico Ambiental da Ponta do Garcês - 2001
As magníficas
bromélias Hohenbergia castellanosii,
que se tingem de vermelho e alaranjado, durante sua fase reprodutiva, são a
marca registrada da Ponta do Garcês e do Parque das Bromélias. Suas populações
apresentam dinâmica bastante complexa e somente vegetam em faixas determinadas
das restingas baianas
Acima - Imagem aérea
da Ponta do Garcês, no Recôncavo Baiano: Do alto, a área sugere aspecto
empobrecido, impressão que desaparece imediatamente, para quem desembarca em
meio ao Parque das Bromélias – Abaixo
No início de 2001, fui convidado por um famoso escritório de
arquitetura do Rio, para quem costumava prestar assessoria, a realizar um
estudo diagnóstico sobre uma área situada no Recôncavo Baiano. Aquele ano foi
especialmente agitado, em minha vida profissional e ativista na conservação.
Poucos meses depois de iniciar os estudos, para a De Fournier & Associados, viria a assumir a presidência da Sociedade Brasileira de Bromélias-SBBr, o que me levou a
tratar ainda mais de perto com essas plantas mágicas de nossa flora, que teriam
papel fundamental no posterior deslinde da questão da Petrobras, na Bahia. Após uma proveitosa expedição à Ponta do
Garcês, onde se pretendia implantar um condomínio de alto padrão, elaborei o Diagnóstico Ambiental da Ponta do Garcês -
2001, que pode ser encontrado no portal científico Pluridoc, no link:
(http://www.pluridoc.com/Site/FrontOffice/default.aspx?module=Files/FileDescription&ID=5201&state=SH
).
O estudo passou um pente fino da natureza da propriedade,
que abarcava mais de 3.000ha de terras praticamente virgens, mostrando
admirável riqueza florística, definindo áreas prioritárias para a conservação e
norteando o futuro desenvolvimento.
A Ponta do Garcês tinha atravessado longa história de
ocupação, na qual havia sido criado gado, de forma muito rudimentar, além do
cultivo de cocos e dendê. Até mesmo uma base avançada da força aérea americana
tinha sido ali instalada, nos tempos da Segunda Grande Guerra, restando apenas
vestígios da pista e da casa de rádio. Quando começamos o estudo, ainda se
extraía a fibra da piaçava, retirada da palmeira Attalea funifera, que é
endêmica da região. Mas, o que mais me surpreendeu, quando desembarquei na sede
da fazenda, foi a informação sobre a existência de um Parque das
Bromélias, de que tanto falavam os funcionários da Ponta do Garcês,
que decantavam o nome do proprietário da área, na conta de um defensor da
natureza – Luiz Raimundo Tourinho Dantas,
mais conhecido como Dr. Mundico.
A história do Parque das Bromélias viria a se explicar,
muito justificadamente, na tarde do mesmo dia, quando fomos conduzidos, na
carroceria de uma Toyota Bandeirante, até o coração da Ponta do Garcês: Ali
estava, com bastante certeza, um dos ecossistemas naturais litorâneos da Bahia
mais conservados, um verdadeiro paraíso de bromeliáceas e orquidáceas, cujas
populações praticamente intactas se agrupavam em diversas tipologias de
vegetação de restingas, que se estendiam por centenas de hectares, dividindo
espaço com florestas, manguezais e toda sorte de quadros impressionantes.
Quanto ao Dr. Mundico, somente poderei lembrá-lo como um
sujeito muito especial, um tipo de “painho” baiano, muito simples, mas
incorporado na figura aristocrática de um homem de extrema cultura e absoluta
paixão pela Ponta do Garcês, por sua flora, por suas bromélias. Tinha sido ele
o responsável pela denominação informal da área central da Ponta do Garcês,
cuja justificativa eu acabava de conferir: Parque
das Bromélias. Acompanhavam-me, nesta aventura descobridora, a bióloga Ana Maria Argôlo, que já me estivera
comigo, em algumas outras expedições, e o técnico agrícola Emerson Pereira da Silva. Depois de sermos ciceroneados pelo Dr.
Mundico, que nos mostrou cada trecho do Parque das Bromélias, passamos alguns
dias a vasculhar sua riqueza florística, até que fosse gerado o referido
Diagnóstico Ambiental de 2001.
A impressionante riqueza natural da Ponta do Garcês não
seria assunto cabível para um texto tão breve como este. Não posso deixar de
recomendar a leitura do referido Diagnóstico
Ambiental-2001 disponível na internet. Apenas para figurar um pouco do que
lá se encontra, tão perto de Salvador,
mas esplendidamente conservado, devo citar as únicas populações intactas da
bromélia Hohenbergia castellanosii, hoje quase desaparecida, na região,
por conta de sua coleta indiscriminada. Mas, uma infinidade de outras
bromeliáceas importantes encontra lá abrigo: Aechmea blanchetiana, A.
marauensis, A. amicorum, Hohenbergia stellata, além da
gigantesca Aechmea multiflora. Dentre as orquídeas, impressiona a
população de Encyclia oncidioides, cuja variação local empresta a impressão
de se tratarem de várias espécies diferentes. Cattleya aclandiae, uma
pequena joia botânica, vegeta até mesmo nas árvores intrincadas dos manguezais.
Mas, havia uma surpresa, que viria a representar verdadeira arma secreta, no
embate com a Petrobras pela conservação da Ponta do Garcês, em 2003: Era uma
espécie nova de bromélia que somente viria a ser descrita para a ciência alguns
anos depois, a partir de material enviado por mim aos cientistas do Jardim
Botânico do Rio de Janeiro – Hohenbergia carnavalii.
Hohenbergia carnavalii é uma bromélia muito espinescente, que
somente medra sob as florestas encharcadas de piaçavas, e que emite linda
inflorescência encarnada, com flores minúsculas e arroxeadas. Não temos
notícias de nenhuma outra população desta planta, fora da Ponta do Garcês. A
Ponta do Garcês é uma área geologicamente nova, formada pela sedimentação do
estuário do rio Jaguaripe, durante o período recente – Holoceno – contando não
mais do que seis mil anos. Por isso, convergiram para lá espécies vindas da
Cadeia do Espinhaço, do Cerrado e da Mata Atlântica, formando um inimitável pool de floras, que se encontram em
plena efervescência genética.
Aspecto da bromélia Hohenbergia carnavalii, uma
espécie restrita à Ponta do Garcês, que foi uma das armas secretas para a
conservação do Parque das Bromélias
Ainda durante 2001, tive a grata oportunidade de apresentar
os resultados do Diagnóstico da Ponta do Garcês ao público, durante evento da
SBBR, realizado no Jardim Botânico do
Rio de Janeiro. Tinha gravado, num PPS (Power Point) bem ilustrado, toda a
natureza da Ponta do Garcês, assim como os partidos que me haviam levado a
sugerir um zoneamento ambiental, com o claro objetivo de subsidiar seu possível
desenvolvimento. Entre os principais argumentos, além da riqueza florística
singular, que incluía espécies ainda não descritas pela ciência, havia uma
delicada questão geomorfológica. Ocorre que o PARQUE DAS BROMÉLIAS existia por força
de uma extensa área dominada por uma rocha de arenito de praia, que mantinha o
lençol freático suspenso, poucos centímetros abaixo da superfície. SUA
BIODIVERSIDADE ESTAVA INDISSOCIAVELMENTE LIGADA À MANUTENÇÃO DESSE AQUÍFERO.
Na medida em que apresentávamos esse mesmo PPS do Jardim
Botânico, ao longo dos QUINZE MINUTOS (sim, somente quinze minutos), que nos
foram dados, a muito contragosto, pelos organizadores do evento de Jaguaripe, a
multidão arregalava os olhos e a equipe técnica da Petrobrás entrava em pânico.
Os semblantes dos técnicos, que estavam na mesa, foram gradualmente se despindo
do ar arrogante, com o qual haviam adentrado o salão, para se tomar de ódio
lancinante, segundo me relatou Sérgio Tourinho, que acompanhava tudo, da plateia.
Numa apresentação de mais de trinta minutos, eles haviam mostrado o PARQUE DAS
BROMÉLIAS como uma “área degradada”, nada mais que um areal inútil, que nada
sofreria, com a passagem do imenso tubulão. Para isso, tinham trabalhado em
escala geográfica, exibindo imagens de satélite, sem NUNCA terem desembarcado
na Ponta do Garcês, para conferir as informações remotas.
Dr. Mundico morreu pouco antes de ser marcada a audiência
pública da Petrobras, em 2003. No Rio de Janeiro, fui contatado pela família,
com a triste notícia, acompanhada da informação de que ele afirmara, poucos
dias antes, que “somente o Orlando Graeff
teria possibilidade de ajudar, na luta pela salvação do PARQUE DAS BROMÉLIAS”.
Como rejeitar a missão? Peguei meus arquivos sobre a Ponta do Garcês e segui
apressado a Salvador, onde era aguardado pelo Dr. Sérgio Tourinho, sobrinho do
Dr. Mundico, que advogaria na questão e acabou se tornando grande amigo. Junto
com Sérgio e seu sócio Anibal Brandão, seguimos correndo para a Ponta do
Garcês, ainda na véspera da audiência pública.
Os estragos de nossas “baterias terrestres” sobre as hostes
inimigas foi definitivo: Se o gasoduto atravessasse a Ponta do Garcês, pelo
PARQUE DAS BROMÉLIAS, como estava projetado, acarretaria a drenagem do lençol d’água
de que falamos, ocasionando seu rebaixamento e consequente extinção de sua
flora – inclusive de espécies endêmicas e desconhecidas. Os Ministérios
Públicos Federal e Estadual da Bahia, que se encontravam presentes, reagiram de
pronto e a audiência pública se viu arruinada. Os pescadores ovacionaram nossa
atuação e, na manhã seguinte, os dois Ministérios Públicos efetuaram uma visita
ao PARQUE DAS BROMÉLIAS.
Cerca de um mês após essa emocionante aventura, recebi um
email de Sérgio Tourinho, acompanhado de uma matéria de jornal baiano: “O presidente da Petrobras determinara a
alteração de traçado do gasoduto de S. F. do Conde, para que não afetasse o
Parque das Bromélias, na Ponta do Garcês”. Mesmo reclamando do imenso custo
financeiro da mudança, eles admitiam a importância ecológica do lugar. Nossa
missão havia sido cumprida e as bromélias e orquídeas da Ponta do Garcês teriam
sobrevida, permitindo que a posteridade pudesse estudar sua ecologia complexa,
na qual reina magnânima a imensa Hohenbergia castellanosii.
Neste instante, relembrei o Dr. Mundico e fiz um pensamento positivo a ele e à
oportunidade de termos, juntos, deixado nossa marca conservacionista, na
história natural da Bahia... E do Brasil.
Acima – Orlando Graeff ao lado de uma imensa bromélia Aechmea multiflora, nas restingas
arbóreas da Ponta do Garcês. Sua inflorescência chama atenção, pela forma e
tamanho – Abaixo
A Seguir – Ana Argôlo e Emerson P. da Silva, meus companheiros de
excursões no Parque das Bromélias
Aspectos da paisagem
da Ponta do Garcês, mostrando o arenito de praia, que aflora na costa e domina
a área central da restinga.
Acima – Cryptanthus lacerdae
no solo da mata de piaçava
Acima – Epistephium lucidum,
uma orquídea que vegeta nos campos limpos da Ponta do Garcês
Abaixo – Epidendrum orchidiflorum,
outra orquídea dos campos alagáveis da restinga
Acima – Epidendrum cinnabarinum
cresce em meio à vegetação intrincada da Ponta do Garcês
Abaixo – Cattleya aclandiae
é uma minúscula joia do Parque das Bromélias e vegeta até mesmo em meio aos
manguezais da Ponta.
Abaixo – Orlando Graeff posa junto à conhecida bromélia Aechmea blanchetiana, vulgarmente
conhecida como bromélia-porto-seguro, bastante comum em cultivo e nativa da
Ponta do Garcês;