quarta-feira, 11 de março de 2015

PROFECIAS DE BUCKSY E O FAR-WEST CABOCLO

               Deve ter sido por volta de 1991, quase 1992, escutei a profecia de minha grande amiga Bucksy Araújo, mulher de imensa estatura intelectual, que aprendi a admirar, desde os tempos em que estudamos juntos, num colégio de Ipanema, no “Rio Antigo”: - Orlando, disse-me ela então, com sua voz aveludada, que esconde sua fortaleza de caráter e sua força pessoal, não demorará a chegar o dia em que isso aqui (Brasil) vai se transformar num Velho-Oeste, onde aquele que sacar primeiro e atirar melhor sobreviverá”. Calado, escutei aquilo com certa incredulidade. Afinal, nossa recém-nascida democracia florescia em aparentes avanços, sob a batuta entusiasmada e entusiasmante do presidente Fernando Collor de Melo, então o mais jovem mandatário já eleito pelo voto direto.

               Achei que Bucksy exagerava. Afeita ao estilo Country, do qual era célebre entusiasta, certamente imaginava cenários fantásticos, inspirados naquele período cercado de romantismo da história americana. E nosso país se prometia tão melhor! Nesta época, eu já abandonava gradativamente meu gosto por armas de fogo, atendendo ao amadurecimento de minha personalidade e à minha decisão de aperfeiçoar meu grau de civilização. Durante anos, especialmente na década de 1980, participara de nosso próprio Far-West, no Mato Grosso, quando conquistava meu espaço naquela que se revelaria a mais importante fronteira agrícola do país – o Centro-Oeste. Naqueles duros tempos, portar armas e atirar muito bem eram ingredientes importantes dos personagens dessa conquista territorial rural.

               Antes que me julguem mal, não carrego, por sorte, qualquer passivo criminal e não deixei nenhuma ossada escondida sob os chapadões vermelhos do Mato Grosso. Talvez mais por sorte, que por juízo. Mas, os tempos passaram, adentrei outra fase de minha vida, no Rio de Janeiro, onde exerci outras atividades menos, digamos assim, arriscadas, abrindo mão por completo da coleção de armas que amealhara, tanto quanto de meu gosto pelo seu uso, o que acompanhava, como afirmei, minha crescente determinação civilizatória.

               Voltando a lidar com o meio ambiente, o paisagismo e a pesquisa naturalista, enviesei automaticamente minha personalidade para um lado mais claro da força, como diriam os fanáticos pela série Guerra nas Estrelas, de George Lucas. Intelectualidade e reflexão não combinavam, decididamente, com a brutalidade e a capacidade destruidora das armas de fogo cada dia mais modernas, como tudo neste mundo tecnológico. Civilização prevê o domínio gradual do animal que habitamos pela nossa capacidade de raciocínio, que deveria sempre suplantar a força física. Mas, não há algo assim como um mundo ideal e a profecia de Bucksy nunca me saiu da lembrança.

               Numa postagem de 24 de abril de 2011 ( http://orlandograeff.blogspot.com.br/search?q=o+ovo+da+serpente ), neste mesmo blog, versei sobre um processo que já então se mostrava fora de controle e que hoje descambou para o cumprimento da profecia Bucksy, tanto para minha própria profecia do Ovo da Serpente: já há muito estamos em plena vigência do estado de descontrole e violência que previu minha querida amiga, no início dos anos 1990 e eu próprio, muitos anos depois. Mas, de onde vem isso? Seria então o caso de chamar Bucksy para compormos um exército de Brancaleone, cada um de nós com sua arma à cinta, treinando obsessivamente nossas miras, de forma a sobrevivermos neste New-West Tupiniquim?

               Antes que os amigos leitores se apavorem, devo contar primeiramente os capítulos seguintes da história pessoal de Bucksy, que a conduziram a se transformar numa excelente escritora de teatro (atriz ela já era!), uma proficiente produtora cultural e até mesmo adepta do Vegan, o que mostra que, uma vez mais, ela se afirma uma mulher à frente de seu tempo. Evoluiu e se civilizou ainda mais, deixando muito para trás sua porção cow-girl e se afirmando mais ser humano que bicho, tarefa a que ainda me entrego esforçadamente, pois ainda me enxergo muito mais como um Papa Francisco que um Gandhi. Explico: Enquanto o fantástico Gandhi professava a não violência e a resistência pacífica, com a qual ajudou a índia a se livrar do jugo britânico; nosso Sumo Pontífice Católico ainda deixa escorregar algumas doutrinas violentas, como “dar uns sopapos em quem ofender sua mãe; ou algumas palmadas nas crianças, que não fazem tão mal assim”.

               Então, para não cansar o leitor, deixe-me avançar no tema e afirmar categoricamente: posso até ainda carregar traços de minha violência inata, natural do animal que sou; mas não admito seu uso como forma civilizada, para resolver questões pessoais. Antes que me deem sopapos ou palmadas educadoras meus bons amigos, devo acrescentar um conceito democrático e legítimo, que ainda acredito ter que valer, por muitos séculos: violência tem que ser monopólio do estado, sendo exercida na forma da lei, exclusivamente pelas forças constituídas para isso – polícia. Claro que, na forma da lei vigente, a legítima defesa justifica o uso da força pelo cidadão comum. Bem... É justamente aí que se abre essa insistente discussão sobre o grau de bang-bang que deveria ser aceito na sociedade dita civilizada.

               Não tenho a pretensão de esgotar o assunto aqui, hoje, nesta postagem que já começa a se alongar por demais para os padrões de leitura paciente desses tempos de internet. Só desejo firmar até então minha completa insatisfação com este famigerado retrocesso civilizatório em que nos metemos, que cumpre a triste profecia de Bucksy sobre vivermos numa sociedade na qual um monte de cow-boys desvairados obtêm supremacia, à custa de “sacar mais rápido”. Minha amiga western estava coberta de razão e pagamos uma conta alta, ela e eu, por termos abandonado nossa índole selvagem e violenta, para ingressarmos num caminho civilizatório que nos lança hoje numa sensação de impotência. Orgulhosamente encontramo-nos os dois à frente de nosso tempo. Espero que sobrevivamos a isso!

               Na próxima postagem, farei algumas necessárias reflexões sobre a conjuntura que caracteriza nosso Near-West Caboclo.



 acima - imagem do cidadão ideal para o enfrentamento dos problemas de segurança do Brasil, nos dias de hoje


ANJOS E DEMÔNIOS – NOSSA ÉTICA LADEIRA ABAIXO

               Em meus passeios pelos estonteantes museus britânicos, onde se visita gratuitamente alguns dos mais importantes tesouros culturais da humanidade, encontrei meu grande amigo Felipe Costa, que andava em frente a uma das galerias de um desses museus, com um ar meio abichornado. Indaguei a ele qual a razão de seu semblante preocupado:

- Salve, Costa, que acervo artístico, não?
- É sim, tudo isso aqui disponível aos jovens ingleses, sem qualquer custo! Que responsabilidade com a educação, com a cultura...
- Então, oras, por que este semblante sério? O que te aflige?
- Sabe o que é, amigo? É que eu acho que não fui muito correto, há alguns minutos...
- O que é isso? Não furou a fila, não é? Os britânicos não gostam dessas coisas.
- Por certo que não, o amigo sabe de minha determinação ética. É que saí tirando umas fotos, havia alguns outros estrangeiros fazendo o mesmo, me animei... clic, clic, clic... Até enxergar aquele cartaz ali, veja.
- PROIBIDO FOTOGRAFIAS... Compreendo. Bem, afinal, ninguém está a fiscalizar... Outros turistas fazem o mesmo...
- Mas, você me conhece: não sou os outros, sabe que oriento meu procedimento pensando no que é certo, não naquilo que os outros fazem.

               Ruborizei com minhas concessões. Felipe é um garoto ético, age no sentido de que seus procedimentos representem norma universal... Gandhi. Eu mesmo, aqui em meu blog (http://orlandograeff.blogspot.com.br/search?q=e+se+todos+fizessem+isso) uma dessas vezes, aludi aos postulados de Kant, que perguntava provocativo: “e se todos fizessem isso?” Um pouco envergonhado de minha leniência ética, refleti um pouco sobre o impasse moral de meu jovem amigo.

               Felipe é um homem jovem, autêntico representante das novas gerações que herdarão o mundo. Tem pouco mais de vinte anos. O que seriam vinte aninhos, diante de minha longa experiência de cinquentão? TUDO, respondo eu! O frescor ético do meu jovem amigo é o azeite que lubrifica nossa sociedade viciada e cheia de, digamos assim, concessões. Estragados pela educação gradualmente destituída da ética, pagamos propina ao guarda, furamos fila, estacionamos na vaga dos deficientes, sujamos tudo à nossa volta (no sentido amplo do que isso significa). Felipe Costa, não, ele acha que isso é errado. Se é errado, por que fazer?

               Tratei de mitigar as angústias de meu amigo, sem deixar de concordar com seus princípios, dizendo a ele que nem precisaria se dar ao trabalho de fotografar tantas telas e esculturas. Afinal, na internet, ele poderia obter imagens de alta qualidade daquelas obras, além de fichas técnicas sobre elas... Há até o site dos museus! Seguimos adiante, ele sem fotografar mais nada e eu pensando com meus botões sobre a lição que tivera de meu jovem amigo.

               Algumas horas depois, vagando pelas tranquilas e bem arrumadas ruas do bairro de Belgravia, onde aprecio ficar, quando visito Londres, tive outro sinal de como é possível situar em nós mesmos, seres humanos ditos civilizados, nossos anjos e nossos demônios. Ao aguardar para atravessar uma rua muito calma, achei por bem respeitar o sinal de trânsito, mesmo quase não havendo automóveis. Quando o sinal finalmente abriu para mim, fazendo-me ensaiar os primeiros passos para atravessar, eis que enxergo um ciclista que se aproximava, ostentando seu capacete e seus elegantes trajes desportivos. Cuidado, disse a mim mesmo, ele vai passar correndo e me atropela!

               Foi quando reencontrei meus anjos e meus demônios: orientado por meus maliciosos diabinhos brasileiros, que nos fazem treinados em toda sorte de pilantragens e incivilidades triviais, preveni-me contra uma suposta agressividade do ciclista inglês, que não veio: o rapaz (também ele um jovem, como Felipe) parou antes da faixa de pedestres e assim permaneceu, até muito tempo após minha passagem, retomando suas pedaladas, tão logo lhe surgiu o sinal verde.

               Em Londres, devo dizer, para-se ao sinal vermelho, esteja você num automóvel, esteja você numa bicicleta! É a norma, é a lei. Se o ciclista não parasse, TALVEZ fosse multado, pois sim, há multas para isso, na capital britânica. Mas, não foi o caso. A rua estava quase deserta, não havia qualquer policial próximo e, mesmo que houvesse câmeras (pois que as há às centenas, por todos os lados), o rapaz não tinha qualquer placa de identificação à mostra em seu “camelo”. Por que parou ele, então, se os seu diabinho particular talvez lhe falasse ao ouvido: “vai lá, passa o sinal, que vai perder tempo aí parado”?

               Ocorre que, em países civilizados, que já passaram pelos tempos de pátria educadora, há muitas centenas de anos, para viver numa fase de PÁTRIA EDUCADA, vive-se a ética com ênfase, devidamente transformada no “anjinho”, que lhes vai ao ombro, fazendo-os perguntar de forma inversa àquela sugerida pelo diabinho: “SE É O CERTO, POR QUE NÃO FAZÊ-LO?

               Terminando minha reflexão, voltei ao que me dissera Felipe, horas antes, na galeria do museu. Se um procedimento é certo, por que DIABOS não fazê-lo? Mesmo que não haja alguém observando, um guarda de trânsito ou até mesmo um fiscal de museu, se há uma regra, se dispõe uma lei, devemos respeitá-las instintivamente, sem escutar as bobagens segredadas de nossos ombros, pelo demoniozinho impertinente que vive em todos os humanos. Foi o que se propôs a fazer Felipe, foi o que fez o ciclista londrino.

               Afirmamo-nos CIVILIZADOS, frequentemente apontado o dedo aos infratores pelos seus deslizes, em geral os grandes e notáveis. Mas, com grande frequência... Ou melhor, com GRADUAL FREQUÊNCIA, vamos fazendo concessões as mais diversas, em nossa PÁTRIA DESEDUCADA, pensando sempre em nós mesmos, em nossa comodidade, na praticidade da vida e, por fim, em interesse próprio. Instigados pelos nossos demônios, estamos caminhando ladeira abaixo em nossa ética, pois viramos uma sociedade autista, onde cada um somente olha para sua barriga, evitando os olhares pidões dos outros. Certo personagem cômico, de uma famosa revista americana, indagava: “what, me worry?” (O quê, eu me preocupar?).

               A lei é o complexo das condições existenciais da sociedade. Isso significa que, numa democracia, os representantes do povo se reúnem, debatem, escutam especialistas sobre os mais diversos assuntos e, por fim, elaboram as leis, que representam o pacto moral sobre o que se pode ou não fazer; sobre o que se deve ou não fazer; e, é claro, como punir aqueles que não respeitam a lei. Muito simples: a força policial cuida para que os cidadãos cumpram as leis (é o que os ingleses chamam – enforcement); o poder judiciário julga e eventualmente condena aqueles que transgridem esse código maior de procedimento. Mas, não há um policial para cada habitante, nem tampouco batalhões de juízes a dirimir os “casos”... E nem precisaria haver!

               Não serão nunca suficientes os milhares, milhões de policiais, para fiscalizar e coibir os atos lesivos à lei praticados por incontáveis cidadãos, se esses resolverem perseguir seus únicos interesses e vontades pessoais, atendendo aos “conselhos” do diabinho que lhes monta ao ombro. A ética é exatamente a noção do indivíduo de que existe um código de procedimentos, que é condição fundamental da existência da civilização. O indivíduo ético cumpre as leis, por que entende que isso é necessário – escuta seus anjos, em vez dos demônios. Foi como agiu Felipe, foi o que fez o ciclista de Londres!

               Obrigado, Felipe, por me fazer lembrar que devo rejuvenescer à sua consciência do que é ético, renunciando aos conselhos impertinentes de meus demônios envelhecidos, que me querem incivilizado. Sou brasileiro, sim, mas não creio que seja esta uma “qualidade” de nosso povo: sermos o país do jeitinho, a pátria da deseducação, a ladeira descendente da civilização, ao sabor da renúncia endêmica à ética. Bem, se o cartaz do museu determina suas normas – PROIBIDO FOTOGRAFAR – vamos guardar nossas câmeras; se o sinal está vermelho, vamos parar, mesmo que não haja um guarda anotando nossas placas. Somos nós mesmos os responsáveis por nossos anjos e demônios.

jovens aguardam o sinal abrir, para prosseguir com suas bicicletas, em Oxford, na Inglaterra: fazem isso simplesmente por que... é o certo!