sábado, 26 de março de 2011

CELACANTO PROVOCA MAREMOTO!

          No meio dos anos de 1970, quando estudava no Colégio Rio de Janeiro, em Ipanema, não podia deixar de notar num garoto bem diferente, que estudava uma série abaixo da minha. Enquanto a maioria de nós, meninos típicos da Ipanema pós-Bossa Nova, usava cabelos longos, vestindo camisetas Hang-Ten ou Val-Surf, bem largas, sobre calças de veludo cotelê, com a boca estreita, de não passar uma laranja, se jogada pelas pernas, além de invariáveis sandálias havaianas e tênis Pampeiro ou Converse All-Star, sua indumentária em muito diferia da nossa: Camisas de tecido, com bolsos e botões, colarinho rígido; Calças de tergal com boca larga (Pantalonas) e; Tênis Bamba... Não havia dúvidas, tratava-se de alguém bastante diferente de nós. Porém, um aspecto chamava atenção para aquele garoto alto e magro, muito mais do que qualquer outro, referente à moda ou aos costumes massificados, tão comuns aos adolescentes: Carlos Alberto – este era seu nome – tinha a cabeça completamente raspada e reluzente!

          Outro aspecto bastante curioso prendia nossa atenção na figura de Carlos Alberto, evitando que, pela sua careca, fosse eventualmente confundido com algum “reco”, como chamávamos aqueles que cursavam colégios militares – o que não seria o caso, pois estávamos no famoso Colégio Rio de Janeiro: Ele andava numa bicicleta já meio antiga (Chamada por ele de “Aranha”), para todos os cantos, portando dois bastões de madeira, ligados por uma corrente, sobre a nuca. Explicaram-me que se tratava de um nunchaco (Arma oriental que o famoso Bruce Lee tornara célebre, em seu filme Operação Dragão). Também eu entusiasta das artes marciais, fui apresentado a ele, não posso me lembrar por quem, passando a chamá-lo de Kung Fu, como era conhecido, por razões óbvias. Soube que seu cabelo raspado se devia à momentânea adesão à Fraternidade dos Mantos Amarelos – FRAMA – uma seita espiritualista oriental, que arrebanhava inúmeros adeptos, na Cidade Maravilhosa. Entendi que suas indumentárias diferenciadas advinham de suas origens diversas das nossas: Fu, como passamos a chamá-lo, carinhosamente, havia morado no Piauí e sua família era mais uma das muitas que chegavam ao Rio, vindas de todas as partes, formando as bases democráticas e cosmopolitas da Cidade Maravilhosa.

          Carlos Alberto Teixeira se tornou amigo e irmão, juntamente com outras figurinhas marcantes, que formavam seleto grupo, naqueles inesquecíveis anos de 1970, no Colégio Rio de Janeiro. Cada um de nós, livre para difundir suas idéias e seu jeito, influenciou o caráter dos outros, dum modo que, infelizmente, não mais permite a ditadura globalizada e cheia de “vergonhas” da gurizada de hoje. Certamente, tornar-se-á desnecessário enumerar aqui os resultados individuais de tanta diversidade comportamental e cultural, nascida ali, desde o Cazuza e a Lucinha Veríssimo, para chegar, também, ao famoso dublê de Jornalista e Mestre em Computação de O Globo: Carlos Alberto Teixeira – o CAT, que até hoje chamo de Fu. Mas, não se tratando de um livro de memórias, mas somente de um rápido post, em meu blog, passo apenas a contar umas três historinhas ligeiras, que envolveram o CAT, e que marcaram por definitivo minha vida, assim como a da Cidade do Rio de Janeiro, no final dos anos de 1970.

          Motivei-me a contar essas passagens, depois de uma alegre troca de comentários no Facebook, tendo como assunto a velha citação que marcou o cotidiano da Cidade Maravilhosa, naqueles tempos: Celacanto Provoca Maremoto! Quando adveio o trágico sismo japonês, seguido pelo monumental tsunami, que ceifou tantas vidas, na Costa Nordeste daquele lindo país, lembrei-me, inevitavelmente, do episódio do seriado trash japonês, da década de 1960 – National Kid – quando o submarino Kilton, pertencente ao Seres Abissais, causava um tsunami sobre uma pequena aldeia japonesa, enquanto ecoava sua ameaça mortal: O Celacanto Provoca Maremoto! Tendo na memória aquelas cenas, que tanto me impressionavam, quando criança, fiquei estarrecido em ver como as cenas inacreditáveis do tsunami do Japão se pareciam com as do National Kid. Vindo, havia poucos dias, de trabalhar sobre a tragédia das chuvas, na Região Serrana do Rio de Janeiro, que também ceifara tantas vidas, resolvi não falar sobre essa estranha impressão, por medo de parecer desrespeitoso com tanta desgraça alheia. Porém, ao sabor do clima de liberdade do Facebook, que derrubou a ditadura das patrulhas comportamentais, resolvi falar dos maremotos e do Celacanto, com todo prazer que isso me traria.

          Naquele final dos anos de 1970, enfrentávamos a severa metamorfose, que transformava nossa velha Ipanema num imenso canteiro de obras, do qual emergiam enormes edifícios de apartamentos. Um tanto revoltados com aquilo, mas embebidos do espírito mais anarquista da República Jovem de Ipanema, achamos por bem, em nossas idas e vindas da praia, rabiscar os tapumes de obras, que dominavam a paisagem, utilizando canetas hidrográficas de ponta grossa, chamadas de pincéis atômicos: É Muito Ovo! Alô! Obrigado! Qualquer besteira que nos vinha à cabeça era escrita, com letras garrafais, naquelas excrescências de madeirite que enfeavam as ruas. Até mesmo uma poesia, cunhada pelo Carlos, é claro, chegou a ser difundida por nós: “Cala-te boca; Que a cor não vá: Sinto-me louco; A cor é lá-lá”. Não queríamos dizer NADA! Mas, uma de nossas inscrições tomou corpo, por trazer certo mistério, pois ninguém das gerações mais velhas se lembraria do National Kid: Celacanto Provoca Maremoto! Carlos se saiu com essa e adoramos focar nesta frase, aparentemente enigmática, que ganhou as ruas e se transformou numa febre, já hoje bastante contada, por muitos cronistas.

          Passo a contar três cenas que me mercaram a memória, em nossa doce delinquência do Celacanto Provoca Maremoto! São flashes deliciosamente engraçados, mas que representaram momentos de grande tensão, em nossas cabeças juvenis, daqueles tempos:

CENA 1 – Já utilizando sprays de tinta, mas NUNCA pichando residências ou monumentos, paramos meu velho fusca azul-marinho, ano 1972, na Avenida Niemeyer, junto a uma grande contenção de encosta, recentemente concluída, logo depois da entrada do Vidigal. Enquanto eu abria o capô da lata velha, fazendo uma cara intrigada de quem procura pelo defeito que a parara, Carlos aplicava um magnífico Celacanto sobre o horrendo muro de concreto: Sempre com aquela caixinha em volta, com uma seta apontando para baixo, onde uma gotinha d’água tremulava. Imagine hoje fazer algo assim, bem ali, naquele lugar!

CENA 2 – Já numa contenda – tudo para o ser humano acaba em guerra – com a turma do Lerfa Mu, outra corrente contemporânea de grafitis, que proliferava no Rio, rabiscávamos provocações e mensagens, num imenso tapume, próximo à esquina entre Visconde de Pirajá e Henrique Dumont, onde antes havia um cinema e nascia outro espigão. A essas alturas, os jornais davam conta de investigações da Polícia sobre a suposta origem dessas pichações em disputas entre facções rivais de traficantes. Como ainda vivíamos sob a ditadura, imagine o medo que tínhamos... Mas, seguíamos em nossa função. Pois, assim que terminamos de pichar mais aquele tapume, guardamos nossos “equipamentos” e nos viramos, surgiu da Henrique Dumont um comboio de uns três camburões da PM, com aqueles soldados mal encarados, armas para fora das janelas, pegando exatamente a Visconde de Pirajá e passando em frente a nós, que ficamos simplesmente petrificados.

CENA 3 – No mesmíssimo Fusca 72, percorríamos as ruas de Ipanema, em direção a Copacabana, procurando tapumes para vitimar, com o tradicional Celacanto. Carlos portava uma bolsa tiracolo, simplesmente lotada de sprays de tinta, luvas para não manchar as mãos e marcadores do tipo pincel atômico. Nada poderia ser mais “criminoso”, naqueles dias, do que aquela bolsa, dentro de nosso carro. Mais uma vez, passaríamos por inesquecível momento de tensão: No meio da rua Francisco Otaviano, no Arpoador, avistamos uma blitz da Polícia Militar, dezenas de metros à frente... Céus! O que fazer? Carlos pensou rápido e agiu com a teatralidade que lhe era típica. Pegou sua bolsa, abriu a porta do carro, despediu-se, com gestos largos e, em alto e bom tom, falou: “ - Muito obrigado, mande abraços à sua mãe, até semana que vem!” Calmamente, sem corridas e passando quase pelo meio dos soldados, que somente vistoriavam os carros, foi esperar-me adiante, continuando nossas operações.

          Pouco tempo depois disso tudo, o pai de Carlos, que era jornalista do Jornal do Brasil, foi abordado por colegas: “Já sabemos que o Celacanto é seu filho. Queremos uma entrevista...” Carlos solicitou uma reunião comigo e com o Brenno Pinheiro, seus principais “comparsas”, ponderando entre nós que, por ser o único menor de idade, deveria assumir sozinho a responsabilidade, para não termos problemas. Depois disso, ainda surgiram Celacantos, aqui e ali, até mesmo em Porto Alegre, São Paulo e mesmo no metrô de Paris. Mas, o mistério havia acabado. Juro que nada temos a ver com o tsunami do nordeste japonês, apesar de tudo ter começado pelas mãos deles – japoneses – nos anos de 1960, quando inventaram essa história de Celacanto Provoca Maremoto!



Resgatei este desenho, de 1980, no qual se vê um Celacanto Provoca Maremoto! Na parede e sobre o qual registrei minhas impressões.


domingo, 20 de março de 2011

TRÊS LUAS E UM MESMO CARA

          Três luas diferentes habitam, de pronto, a memória deste escrevinhador de meia idade. Bem, talvez seja a primeira vez que adoto esta estranha caracterização – Meia Idade. Mas, levando em conta que sigo determinado a chegar aos 100 anos, com a mesma lucidez de hoje e, se possível, com capacidade física semelhante, tenho que admitir, aos 52 anos, encontrar-me na flor da meia idade. Pois bem, para aferir essa capacidade mental, de que me arvoro, recorro às três luas, talvez não tão diferentes, do ponto de vista físico, mas bastante diversas, no que toca à minha memória.
          A memória, afinal, é dos equipamentos mais fundamentais para aquele que se pretende considerar em pleno gozo de suas faculdades mentais. Estranhamos muito quando alguém começa a se lembrar, em demasia, de eventos extremamente distantes, no tempo, esquecendo-se daqueles vividos há poucos instantes: É a demência chegando. Desse modo, regozijo-me de não lembrar daquelas belas luas que, um dia, banharam a pequena rua Vitório da Costa, no Humaitá, por volta do início dos anos de 1960. Nasci nesta rua, entre o sovaco do Cristo e a sombra do Mirante Dona Marta, no Rio de Janeiro e me lembro muito pouco dos belos dias que passei por lá. Deixo bem mais para adiante os posts nos quais escreverei sobre minha infância, no Humaitá, sem lembrar mais das três luas que ora relato.
          Por enquanto, tenho três luas para contar. A primeira delas, no quintal de uma casinha, num lugar chamado Seropédica, próximo à Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, onde estudava Agronomia, no finalzinho da década de 1970. Hoje, Seropédica é um município, com vida própria. Mas, naquele tempo, não passava de um distrito de Itaguaí, que somente possuía uma rua principal pavimentada, com paralelepípedos – a famosa rua Sete – sendo todas as demais nada mais que estradinhas de terra, invariavelmente marcadas por valas que acompanhavam seu caminho, captando águas das chuvas e esgotos, sem conseguir levá-los muito longe, devido à planura do terreno. Aí pelos meus dezenove ou vinte anos, tocava, solitário, minha gaitinha de boca (Harmônica) para a lua, sonhando com todos os amores possíveis – os já vividos, os em pleno curso e aqueles outros, por viver, em outras luas, mais para frente.
          A segunda lua se deu pouco mais adiante, durante os anos de 1980, no mais profundo e ermo sertão do Mato Grosso, escondido nalgum lugar, entre os vales dos rios das Mortes e Araguaia. Cercado de cerrados e florestas, por todos os lados, caminhava sob a forte luz da lua, lendo cartas a mim enviadas, pelo amigo Paulo Raguenet. Encantava-me com o fato de poder lê-las, ao som monótono do pio do curiango, sem precisar contar com qualquer outra fonte de luz, que não fosse o brilho prateado da lua cheia. Não havia energia elétrica, por dezenas de quilômetros à minha volta, mas eu podia enxergar com perfeição, contando somente com aquele luar do sertão. Lembrava-me da música: “Não há, ó gente não, luar como esse do sertão...”
          Por fim, a terceira lua de que me lembro... Nada difícil, para quem não começou a se esquecer das memórias recentes: A lua da noite de 19 para 20 de março de 2011 – ontem – que iluminou os céus de Petrópolis, como não o fazia, segundo dizem, havia dezoito anos. Foi uma BIG MOON, um fenômeno astronômico, no qual a lua, mais próxima, nos lança luminosidade toda especial. Era quase dia, no meio da noite! Que bom poder revê-la e lembrar de luas antigas e luas recentes, com os amores que ela embalou e ainda embala. Ah! Ela ainda está lá, hoje à noite: There’s a moon, over Bourbon Street tonight..!


Essa lua linda passou aqui em cima, ontem, fazendo-me lembrar de outras luas de minha vida

segunda-feira, 14 de março de 2011

Patetas ao Volante

          Minha recente viagem ao Sul do país que, aliás, se repete quase todos os anos, haja vista ter família no Rio Grande do Sul, ainda continua me trazendo motivos para minhas reflexões. Como essas reflexões me induzem a repetir o hábito de postar meus blogs, aborrecendo amigos e leitores, em geral, eis-me aqui, escrevendo novamente. O tema, desta vez, é o trânsito. Não sou especialista em trânsito, mas, temos que considerar: Nada mais significativo como a maneira como pegamos ao volante de nossos carros e, em frente a ele, lidamos uns com os outros. Trânsito é psicologia, trânsito é meio ambiente... Trânsito, enfim, nos dias atuais, é como mostramos que tipo de bicho somos. Assim, autorizo-me a falar sobre trânsito, esquecendo-me, para isso, de tratar de estatísticas, motores, mobilidades urbana etc. O tema é o homem, ou melhor, o lobo que o homem é. Digo isso, lembrando-me do que me diz, com freqüência, meu grande amigo Maurício Verboonen: “O homem é o lobo do homem”.
          Quando menino, o que já começa a representar tempo considerável, divertia-me assistindo a um clássico desenho animado de Walt Disney (Sim, no meu tempo, “A Disney” ainda levava o nome de seu criador – Walt Disney), no qual um de seus mais interessantes personagens, o Pateta, mostrava o costume do motorista, em geral: Tornar-se um lobo, ao volante de seu carro. O desenho se iniciava com um Pateta maravilhosamente cordial, caminhando por uma daquelas civilizadas ruas das cidades de Disney, cumprimentando senhoras e vizinhos, cumulando de gentilezas todos aqueles que encontrava, em seu caminho, até... Até entrar em seu carro e, como num daqueles efeitos especiais dos filmes de Hollywood, transformar-se num monstruoso lobo, com dentes afiados, em fileiras de arcada de tubarão, babando copiosamente, com olhos arregalados, para sair em alta velocidade, da forma mais agressiva possível, numa “patética” (no sentido da palavra e não do personagem) competição com os demais e, principalmente, contra aqueles mesmos pedestres que, minutos antes, tratava com tamanha civilidade.
          Nunca assisti desenho mais filosófico do que o motorista-pateta de Walt Disney e, lembrando-me dele, tento sempre superar meu lobo selvagem, ao volante de meu carro, portando-me como criatura civilizada. Nada mais significativo sobre o grau de civilidade de um homem do que a maneira como se porta no trânsito. Porém, não tenho encontrado níveis aceitáveis de civilização, no trânsito de nossa terra. Isso poderia me levar àquelas mesmas lamúrias de todos, atribuindo isso aos mesmos problemas psicossociais que também têm ocasionado incremento na violência, na roubalheira etc. Sim, não há dúvidas de que vivemos uma crise moral de imensas dimensões. Porém, dois recentes acontecimentos me levaram a abrir a boca, ou melhor, a digitar um texto, falando sobre o tema. Não poderia ficar calado. Ao escrever, tenho certeza, estarei a contribuir para que, na medida em que se tornar possível, comecemos a combater este lobo que está nos destruindo, diuturnamente, roubando-nos a civilização que deveríamos estar cultivando.
          Um dos acontecimentos mais significativos, ninguém haverá de duvidar, foi aquele a que assistimos, em nossas televisões, dias atrás, quando um homem de aparência (Apenas aparência, é claro) normal acelerou seu carro sobre um grupo de ciclistas, que faziam um protesto, numa rua de Porto Alegre. Felizmente, ninguém morreu! Pura sorte, pois a cena era dantesca, com gente sendo lançada aos ares, pelo Pateta em fúria. O Pateta fugiu, sem prestar socorro, tendo – pasme – seu filho no banco do passageiro. O Pateta sanguinário surgiu na telinha, dias depois, metido num terno sóbrio, com uma carinha civilizada de dar pena. Um homem comum? Não, um Pateta como tantos outros, desta feita, com o jeitinho normal do Pateta de Disney, pois já estava fora de seu carro. Isso ocorreu no Rio Grande do Sul, um Estado que aprendi a cultuar, desde a infância, como um tipo de Europa do Brasil, no qual sempre me impressionava o nível de civilização, supostamente suportado pela ascendência alemã e italiana de seu povo.
          O segundo acontecimento, mais trágico, foi o resultado da Operação Carnaval da Polícia Rodoviária Federal, que registrou nada menos do que 200 mortes, em mais de 4.000 acidentes, país afora, no curtíssimo espaço de quatro ou cinco dias. Segundo a PRF, o crescimento foi de 50% sobre a base do ano anterior e uma série de hipóteses vieram, para tentar explicar os números: Aumento de carros nas estradas; Decadência da infra-estrutura viária; Álcool; Ultrapassagens; enfim, um monte de verdades sobre o desempenho do LOBO, ao volante de seus veículos. Porém, um aspecto discreto me chamou atenção, em meio às estatísticas sobre as quais pouco poderia falar. A estrada na qual se registrou a maioria das mortes foi a BR-101, em seu trecho catarinense. Trata-se daquela que liga as lindas praias de Santa Catarina ao Estado do Rio Grande do Sul. Para aqueles que não são familiarizados aos costumes gaúchos, tenho que explicar: O Rio Grande do Sul migra quase por inteiro, nas férias de verão e seus feriados próximos, para as praias, entre elas, as mais lindas e atraentes, situadas em Santa Catarina. Trata-se de uma debandada monumental, que esvazia Porto Alegre e demais cidades, transferindo para o litoral até emissoras de televisão e redes de lojas.
          O litoral do próprio Estado encontra-se hoje bem servido de rodovias, que são bem pavimentadas e fiscalizadas. Já Santa Catarina, coitada, enfrenta as agruras de uma duplicação prometida ao início do governo Lula, mas que se arrasta até hoje, causando transtornos os mais diversos. Mas, é claro que os lobos de bombachas não tolerariam a morosidade do trânsito na BR-101 catarinense e, como em tantos outros anos, insistiram em matar e morrer no caminho das praias. Assim, as mortes na estrada que liga Florianópolis a Porto Alegre não foram catarinenses, mas sim atribuíveis aos mesmos motoristas gaúchos, como aquele que levantou aos ares os ciclistas e que, até uns dias atrás, encontrava-se preso – Coisa pouco comum, no Brasil.
          Tudo isso me fez recordar que retornara do Rio Grande do Sul, no começo do ano, impressionado com suas paisagens, cada vez mais lindas, com seus vinhos, cada vez melhores, e com seus motoristas, cada dia mais selvagens. Imaginava como escrever este blog, desde então, o que era sempre atropelado (Êpa! Não pelos Patetas-Lobos) por temas mais agradáveis ou urgentes. Porém, depois desses dois acontecimentos, não pude mais esperar. De minhas impressões originais, da viagem de fim de ano, somente deverei relatar uma, para se juntar ao que falei, acima: Foi a horrenda experiência de trafegar pelas estradas gaúchas, especialmente aquelas que cortam a Região Serrana do Estado.
          Deixando Caxias do Sul, onde passei alguns dias, na direção de Bento Gonçalves, onde fica o admirável Vale dos Vinhedos, passando por Farroupilha, passei momentos de grande tensão, na direção de meu automóvel com minha família: Caminhões trafegavam em alta velocidade, carregados ou não, dirigindo a poucos centímetros dos carros que lhes ousassem ficar à frente, e ultrapassando em curvas cegas, em muitos casos, expulsando os que lhes viessem em direção contrária. Quando mal sucedidos em suas loucuras, fechavam sem constrangimento aqueles a quem tentavam ultrapassar e, não poucas vezes, buzinavam agressivamente, em protesto por lhes tomarem seu precioso tempo os veículos que ousassem trafegar de forma civilizada. Motoristas de automóveis não agiam de forma muito diferente, mostrando, todos eles, notáveis níveis de agressividade e desrespeito às leis de trânsito. Tudo que se via, nas estradas gaúchas, eram Patetas e mais Patetas, em suas versões de pele de lobo. Deixem-me apenas fazer uma ressalva, para que não me tenham como um “tranca-ruas”, desses que ficam molengando e atrapalhando o trânsito. Não sou definitivamente o tipo, podem ter certeza, e vivo grande parte de minha vida nas estradas do país, conhecendo muito bem suas estradas e seus tipos de motoristas. Posso dizer, então, sem medo de errar: Não conheço Estado que congregue tantos Patetas-Lobos, como meu querido e um dia idealizado Rio Grande do Sul.
         Ao externar minha impressão, para alguns interlocutores da região, sobre o aspecto contraditório de ter estradas assim, entregues à barbárie, ligando lugares de atratividade turística, tão famosos, como o Vale dos Vinhedos, Gramado e Canela, escutei resposta unânime e desalentadora: “Nossas autoridades não ligam para isso, pois acham mais importantes as indústrias da região, que provocam este trânsito (Especialmente de caminhões), do que o turismo, que gera menos impostos.” Pois é, meus amigos, o homem é decididamente o lobo do homem. O mundo dos negócios não é tradicionalmente “uma selva”? Com efeito, numa selva, não há lugar para os homens civilizados, mas somente aos lobos selvagens que habitam em nós. Somente poderei lamentar que meu Rio Grande do Sul, do qual trago tantos de meus hábitos, se tenha jogado nos braços da incivilidade, priorizando seus Patetas-Lobos, em vez de seus “Patetas-Gente-Boa”. Parafraseando o artista Gaúcho da Fronteira, um autêntico representante de meu velho Rio Grande, com seus versos e sua acordeona aragana, lá de Santa do Livramento: “O que é bom não se mistura e o que é ruim de longe vem”. É uma pena que os gaúchos se venham rendendo ao que de ruim de longe lhes tem vindo.


O Pateta Motorista de Walt Disney - Imagem comum em nossas ruas e estradas