No meio dos anos de 1970, quando estudava no Colégio Rio de Janeiro, em Ipanema, não podia deixar de notar num garoto bem diferente, que estudava uma série abaixo da minha. Enquanto a maioria de nós, meninos típicos da Ipanema pós-Bossa Nova, usava cabelos longos, vestindo camisetas Hang-Ten ou Val-Surf, bem largas, sobre calças de veludo cotelê, com a boca estreita, de não passar uma laranja, se jogada pelas pernas, além de invariáveis sandálias havaianas e tênis Pampeiro ou Converse All-Star, sua indumentária em muito diferia da nossa: Camisas de tecido, com bolsos e botões, colarinho rígido; Calças de tergal com boca larga (Pantalonas) e; Tênis Bamba... Não havia dúvidas, tratava-se de alguém bastante diferente de nós. Porém, um aspecto chamava atenção para aquele garoto alto e magro, muito mais do que qualquer outro, referente à moda ou aos costumes massificados, tão comuns aos adolescentes: Carlos Alberto – este era seu nome – tinha a cabeça completamente raspada e reluzente!
Outro aspecto bastante curioso prendia nossa atenção na figura de Carlos Alberto, evitando que, pela sua careca, fosse eventualmente confundido com algum “reco”, como chamávamos aqueles que cursavam colégios militares – o que não seria o caso, pois estávamos no famoso Colégio Rio de Janeiro: Ele andava numa bicicleta já meio antiga (Chamada por ele de “Aranha”), para todos os cantos, portando dois bastões de madeira, ligados por uma corrente, sobre a nuca. Explicaram-me que se tratava de um nunchaco (Arma oriental que o famoso Bruce Lee tornara célebre, em seu filme Operação Dragão). Também eu entusiasta das artes marciais, fui apresentado a ele, não posso me lembrar por quem, passando a chamá-lo de Kung Fu, como era conhecido, por razões óbvias. Soube que seu cabelo raspado se devia à momentânea adesão à Fraternidade dos Mantos Amarelos – FRAMA – uma seita espiritualista oriental, que arrebanhava inúmeros adeptos, na Cidade Maravilhosa. Entendi que suas indumentárias diferenciadas advinham de suas origens diversas das nossas: Fu, como passamos a chamá-lo, carinhosamente, havia morado no Piauí e sua família era mais uma das muitas que chegavam ao Rio, vindas de todas as partes, formando as bases democráticas e cosmopolitas da Cidade Maravilhosa.
Carlos Alberto Teixeira se tornou amigo e irmão, juntamente com outras figurinhas marcantes, que formavam seleto grupo, naqueles inesquecíveis anos de 1970, no Colégio Rio de Janeiro. Cada um de nós, livre para difundir suas idéias e seu jeito, influenciou o caráter dos outros, dum modo que, infelizmente, não mais permite a ditadura globalizada e cheia de “vergonhas” da gurizada de hoje. Certamente, tornar-se-á desnecessário enumerar aqui os resultados individuais de tanta diversidade comportamental e cultural, nascida ali, desde o Cazuza e a Lucinha Veríssimo, para chegar, também, ao famoso dublê de Jornalista e Mestre em Computação de O Globo: Carlos Alberto Teixeira – o CAT, que até hoje chamo de Fu. Mas, não se tratando de um livro de memórias, mas somente de um rápido post, em meu blog, passo apenas a contar umas três historinhas ligeiras, que envolveram o CAT, e que marcaram por definitivo minha vida, assim como a da Cidade do Rio de Janeiro, no final dos anos de 1970.
Motivei-me a contar essas passagens, depois de uma alegre troca de comentários no Facebook, tendo como assunto a velha citação que marcou o cotidiano da Cidade Maravilhosa, naqueles tempos: Celacanto Provoca Maremoto! Quando adveio o trágico sismo japonês, seguido pelo monumental tsunami, que ceifou tantas vidas, na Costa Nordeste daquele lindo país, lembrei-me, inevitavelmente, do episódio do seriado trash japonês, da década de 1960 – National Kid – quando o submarino Kilton, pertencente ao Seres Abissais, causava um tsunami sobre uma pequena aldeia japonesa, enquanto ecoava sua ameaça mortal: O Celacanto Provoca Maremoto! Tendo na memória aquelas cenas, que tanto me impressionavam, quando criança, fiquei estarrecido em ver como as cenas inacreditáveis do tsunami do Japão se pareciam com as do National Kid. Vindo, havia poucos dias, de trabalhar sobre a tragédia das chuvas, na Região Serrana do Rio de Janeiro, que também ceifara tantas vidas, resolvi não falar sobre essa estranha impressão, por medo de parecer desrespeitoso com tanta desgraça alheia. Porém, ao sabor do clima de liberdade do Facebook, que derrubou a ditadura das patrulhas comportamentais, resolvi falar dos maremotos e do Celacanto, com todo prazer que isso me traria.
Naquele final dos anos de 1970, enfrentávamos a severa metamorfose, que transformava nossa velha Ipanema num imenso canteiro de obras, do qual emergiam enormes edifícios de apartamentos. Um tanto revoltados com aquilo, mas embebidos do espírito mais anarquista da República Jovem de Ipanema, achamos por bem, em nossas idas e vindas da praia, rabiscar os tapumes de obras, que dominavam a paisagem, utilizando canetas hidrográficas de ponta grossa, chamadas de pincéis atômicos: É Muito Ovo! Alô! Obrigado! Qualquer besteira que nos vinha à cabeça era escrita, com letras garrafais, naquelas excrescências de madeirite que enfeavam as ruas. Até mesmo uma poesia, cunhada pelo Carlos, é claro, chegou a ser difundida por nós: “Cala-te boca; Que a cor não vá: Sinto-me louco; A cor é lá-lá”. Não queríamos dizer NADA! Mas, uma de nossas inscrições tomou corpo, por trazer certo mistério, pois ninguém das gerações mais velhas se lembraria do National Kid: Celacanto Provoca Maremoto! Carlos se saiu com essa e adoramos focar nesta frase, aparentemente enigmática, que ganhou as ruas e se transformou numa febre, já hoje bastante contada, por muitos cronistas.
Passo a contar três cenas que me mercaram a memória, em nossa doce delinquência do Celacanto Provoca Maremoto! São flashes deliciosamente engraçados, mas que representaram momentos de grande tensão, em nossas cabeças juvenis, daqueles tempos:
CENA 1 – Já utilizando sprays de tinta, mas NUNCA pichando residências ou monumentos, paramos meu velho fusca azul-marinho, ano 1972, na Avenida Niemeyer, junto a uma grande contenção de encosta, recentemente concluída, logo depois da entrada do Vidigal. Enquanto eu abria o capô da lata velha, fazendo uma cara intrigada de quem procura pelo defeito que a parara, Carlos aplicava um magnífico Celacanto sobre o horrendo muro de concreto: Sempre com aquela caixinha em volta, com uma seta apontando para baixo, onde uma gotinha d’água tremulava. Imagine hoje fazer algo assim, bem ali, naquele lugar!
CENA 2 – Já numa contenda – tudo para o ser humano acaba em guerra – com a turma do Lerfa Mu, outra corrente contemporânea de grafitis, que proliferava no Rio, rabiscávamos provocações e mensagens, num imenso tapume, próximo à esquina entre Visconde de Pirajá e Henrique Dumont, onde antes havia um cinema e nascia outro espigão. A essas alturas, os jornais davam conta de investigações da Polícia sobre a suposta origem dessas pichações em disputas entre facções rivais de traficantes. Como ainda vivíamos sob a ditadura, imagine o medo que tínhamos... Mas, seguíamos em nossa função. Pois, assim que terminamos de pichar mais aquele tapume, guardamos nossos “equipamentos” e nos viramos, surgiu da Henrique Dumont um comboio de uns três camburões da PM, com aqueles soldados mal encarados, armas para fora das janelas, pegando exatamente a Visconde de Pirajá e passando em frente a nós, que ficamos simplesmente petrificados.
CENA 3 – No mesmíssimo Fusca 72, percorríamos as ruas de Ipanema, em direção a Copacabana, procurando tapumes para vitimar, com o tradicional Celacanto. Carlos portava uma bolsa tiracolo, simplesmente lotada de sprays de tinta, luvas para não manchar as mãos e marcadores do tipo pincel atômico. Nada poderia ser mais “criminoso”, naqueles dias, do que aquela bolsa, dentro de nosso carro. Mais uma vez, passaríamos por inesquecível momento de tensão: No meio da rua Francisco Otaviano, no Arpoador, avistamos uma blitz da Polícia Militar, dezenas de metros à frente... Céus! O que fazer? Carlos pensou rápido e agiu com a teatralidade que lhe era típica. Pegou sua bolsa, abriu a porta do carro, despediu-se, com gestos largos e, em alto e bom tom, falou: “ - Muito obrigado, mande abraços à sua mãe, até semana que vem!” Calmamente, sem corridas e passando quase pelo meio dos soldados, que somente vistoriavam os carros, foi esperar-me adiante, continuando nossas operações.
Pouco tempo depois disso tudo, o pai de Carlos, que era jornalista do Jornal do Brasil, foi abordado por colegas: “Já sabemos que o Celacanto é seu filho. Queremos uma entrevista...” Carlos solicitou uma reunião comigo e com o Brenno Pinheiro, seus principais “comparsas”, ponderando entre nós que, por ser o único menor de idade, deveria assumir sozinho a responsabilidade, para não termos problemas. Depois disso, ainda surgiram Celacantos, aqui e ali, até mesmo em Porto Alegre, São Paulo e mesmo no metrô de Paris. Mas, o mistério havia acabado. Juro que nada temos a ver com o tsunami do nordeste japonês, apesar de tudo ter começado pelas mãos deles – japoneses – nos anos de 1960, quando inventaram essa história de Celacanto Provoca Maremoto!
Resgatei este desenho, de 1980, no qual se vê um Celacanto Provoca Maremoto! Na parede e sobre o qual registrei minhas impressões.