Quando estive na Serra da Canastra, Minas Gerais, em abril
de 2015, para mais uma memorável aventura de conhecimento de sua natureza
singular (ver postagem do blog Expedição Fitogeográfica: http://expedicaofitogeografica2012.blogspot.com.br/2015/06/uma-nova-visita-serra-da-canastra-maio.html
), fui agraciado com uma surpresa. Meu guia e amigo Elossandro Coelho, um apaixonado por tudo que a região tem a
oferecer, me presenteou com uma garrafa de vinho. Calma, não era um simples
presente de fornecedor a cliente, daquele tipo de garrafa de vinho que a gente
compra, coloca numa caixinha, com lacinho de fita e cartão de agradecimento.
Não, não era nada disso:
- Trouxe aqui um vinho aqui da Serra da Canastra, de São
João Batista do Glória, para você experimentar e dizer se gosta, disse-me
Elossandro. Fiquei surpreso, não posso negar. Vinho, na Serra da Canastra?
Vinhos, em Minas Gerais, já me deixariam um tanto descrente, talvez pelo
simples fato de que não são e nem nunca foram tradição deste estado. Na Serra
da Canastra, então... Que dizer? Quem conhece a região entenderá: lugar
paradisíaco, de inigualáveis belezas naturais, nascente do rio São Francisco –
o Velho Chico – e terra de gente simples, com aquele jeitinho tipicamente
mineiro. Jamais esperaria encontrar uma vinícola, na Serra da Canastra,
tradição usualmente ligada a imigrantes europeus e principalmente arraigada aos
estados do sul.
Viajantes do Século XIX já diziam ter encontrado parreiras
de uvas na região, assim como garrafas de vinho produzido por seus primeiros
habitantes. Mas, isso se perdera no passado e seria mais que esperado que eu me
surpreendesse com um... Vinho da Serra da Canastra, em pleno Século XXI. Meu
amigo sabia disso e se adiantou em explicar: Tratava-se de uma pequena vinícola
mantida por certa pessoa de fora da região, uma tentativa de introduzir a
vinicultura na região, uma experiência levada a sério, segundo ele.
Sabedor de meu gosto por vinhos e, principalmente, pelas
condições ecológicas em que eles são criados – terroir –, Elossandro resolveu me oferecer o presente, esperançoso
de que eu me manifestasse sobre os resultados. Muito bem! Por que não? Peguei a
garrafa do Relena
Tannat – 2013 – Reserva e indaguei: - Posso levar e experimentar em
casa? E mais, posso ser sincero, ao relatar os resultados? Diante da
concordância com essas “rígidas” condições, trouxe a valiosa garrafa
canastrense e, passados alguns meses, em condições apropriadas, realizei o
teste.
A Serra da Canastra é uma grande superfície de cimeira, um
platô elevado a mais de 1.200m, que representa importante divisor de águas e
climas. Ela se estende aproximadamente de sudeste a noroeste, possuindo em sua
área mais central ao menos duas cristas semiparalelas, que barram as massas de
ar que advêm do planalto paulista, no qual domina a bacia do rio Grande, que
corre ao Paraná. Para além dessa influência determinante, a norte-nordeste, estendem-se
os domínios do Cerrado, no Triângulo Mineiro. Em seus limites mais a sudeste,
nascem as águas do Velho Chico, partindo do topo da Canastra, para se
derramarem pujantes na famosa cachoeira da Casca
D’Anta.
Pois é naquela face voltada ao rio Grande, na vertente do
chamado Chapadão da Babilônia, uma
das duas cristas paralelas da Canastra, que se encontra situada a localidade de
São João Batista do Glória, com altitudes da ordem dos 700-800m, onde se
instalou a vinícola Relena, com parreirais pequenos e, segundo Elossandro,
muito bem conduzidos. Há que se considerar que essa climatologia deve se
prestar bem ao cultivo de uvas vinícolas, em função do efeito climático da
barreira da Canastra e das temperaturas relativamente frias do inverno.
Acima - Serra da Canastra, um novo terroir em Minas Gerais?
Abaixo - Cachoeira Casca D'Anta, nascente do rio São Francisco, despencando da Serra da Canastra
Nossa experiência com o Tannat 2013 Reserva da Relena não
poderia ser de forma mais instigante: Qual seriam as referências para um vinho
produzido em pleno Brasil Central, sem contar ele com qualquer outro vinho
notável, produzido na região? Estávamos falando de vinhos finos,
descartando-se, obrigatoriamente, experiências menos sofisticadas, tais como
aquelas que já ocorreram nalgumas partes de São Paulo. As uvas Tannat são
provenientes do sul da França, mas ficaram especialmente famosas, no Novo
Mundo, ao se consagrarem como típicas do Cone Sul, sendo o Uruguay, nos dias
atuais, a pátria desses tintos poderosos.
Vinhos Tannat costumam ser potentes e encorpados, sendo seus
taninos expressivos sua principal e desejável característica. Considerando-se a
natureza da dieta uruguaia, na qual abundam carnes de primeira linha,
destacando-se seus contrafilés muito gordos e suas ovelhas, explica-se a razão
do forte investimento de suas vinícolas em bons Tannats, para fazer frente a
tanta proteína e gordura. Rótulos célebres, como Bouza, Pisano, Don Pascual e Stagnari fizeram a fama dos uruguaios e se firmaram como itens
obrigatórios, nas melhores caves. Mas, seria justo ter como referência ícones
deste calibre, ao se avaliar o Tannat da Serra da Canastra?
Bem, devemos ter em conta que também o Brasil vem produzindo
Tannats de boa qualidade, especialmente na chamada região da Campanha Gaúcha, bem lá na fronteira
entre Rio Grande do Sul e Uruguai, onde alguns platôs tabuliformes, velhos
planaltos de arenito, sediam vinícolas de porte, entre elas a célebre Miolo,
que tem firmado internacionalmente o nome da vinicultura gaúcha. Aí estava a
solução, para nosso teste comparativo: justapor dois vinhos brasileiros Tannat,
preferencialmente produzidos no mesmo ano e sob processos similares.
Luiz Tomás Graeff
nos trouxe do Rio Grande do Sul uma garrafa do Miolo Tannat 2013 Reserva.
Estava lançado o desafio: um teste comparativo entre um vinho reconhecido no
mercado, que encontraria consumidores em qualquer parte e que poucos recusariam
mérito, e nosso novo Tannat canastrense, de São João Batista do Glória.
Reunimo-nos em três apreciadores de bons vinhos, cada um com seus conceitos
particulares e, sem dúvida, bem acostumados a apreciar juntos os mais diversos
vinhos, sempre sustentando seus pontos de vista: Rosnéri (Méri) Copetti, Philip Shores e eu, sendo auxiliados
pela cuidadosa Bárbara Graeff, uma
abstêmia convicta, mas excelente organizadora.
Acima - Bebendo vinhos e opinando: Méri, Orlando e Philip
Abaixo - Os vinhos testados, juntamente com o queijo canastra e o culatello
O teste não tinha objetivos meramente técnicos, haja vista
nenhum de nós ser profissional e sendo todos simples amantes de bons vinhos,
que usualmente bebemos com a alma, não apenas com nossas mal treinadas papilas
gustativas. Os dois vinhos foram abertos sem nossa presença, sendo numerados,
assim como as duas taças que cada um de nós recebeu, para realizar a
degustação. Vinho 1 e vinho 2... Era tudo que sabíamos sobre eles, ao
recebê-los em nossa mesa.
Como não poderia deixar de ser, os dois vinhos também
passariam por duas harmonizações importantes: uma delas, com caráter carregado
de simbolismo, seria realizada acompanhada de queijo Canastra que eu trouxera
de São Roque de Minas, fabricado pelo lendário Sr. Zé Mário (ou seja, o melhor queijo do Brasil – um queijo
canastra), juntamente com um perfeito culatello (coração de pernil), irmão mais
perfeito do presunto de Parma, fabricado no Rio Grande do Sul, no Planalto
Médio; a segunda harmonização, como não poderia deixar de ser, seriam duas
lindas e suculentas peças de fraldinha e alcatra, assadas na brasa.
Cerca de uma hora separaria esses dois testes, tendo sido
novamente degustados, bem mais tarde, à noite, após boas horas abertos e
repousando em suas próprias garrafas. Anotamos e debatemos alguns critérios
relacionáveis à variedade. Nossa primeira impressão, sem sabermos o que
bebíamos, mas posteriormente informados, foi a seguinte:
Taninos: No primeiro momento, o
Relena passou aos meus dois comensais a impressão de superioridade, enquanto eu
atribuía ao Miolo maior força, por conta de um inequívoco ataque, talvez em
face de certa acidez. Contudo, já na segunda prova, na hora de enfrentar a
carne, minha impressão modificara um pouco e já se expressavam com pouco mais
de potência no Relena, embora tenha eu atribuído “leveza”.
Final: Méri não apreciou muito o
final do Miolo, preferindo o Relena, enquanto Philip atribuiu uma permanência
pouco maior ao vinho gaúcho, o que viria ao encontro de minhas impressões, que
reconheciam, até a segunda prova, longo final ao Miolo, embora o Relena viesse
avançando, até ali.
Frutas: Tannats são de caráter
usualmente frutado e ambos não escondiam isso. Talvez, o maior ataque por mim
atribuído ao Miolo viesse exatamente do cruzamento de suas frutas ácidas, ainda
muito presentes, com seus taninos. Méri reconheceu frutas muito fortes no
gaúcho, por ser caráter que ela não costuma apreciar tanto, nos vinhos
brasileiros, de forma geral. Minha comensal valoriza bastante a maturidade dos
vinhos italianos, especialmente toscanos de guarda, supertoscanos e franceses
Bordeaux, muito embora tenha grande paixão pelos Tannats uruguaios, advindos
dos solos férteis de Montevideo ou Salto. Philip “enxergou” perfumes fortes no
Miolo, que não escondia sua relativa imaturidade na garrafa.
Corpo: Todos foram unânimes em não
atribuir muita expressão aos corpos de ambos os tintos, por ocasião de sua
abertura, coisa que não se alterou significativamente, mesmo uma hora após
abertos. O Relena revelava mais espuma que o Miolo.
Coloração: Uma coloração mais
intensa foi logo notada no Miolo, embora se tornasse um pouco difícil
separá-los, quando justapostos. Cruzada com os corpos de ambos, percebia-se
menor densidade do que aquela usualmente notada, por exemplo, nos uruguaios, assim
como em outros Tannats da Campanha (RS). Méri e Philip observaram que o Miolo
havia intensificado seu corpo, na segunda prova, resultando lágrimas mais
duradouras, enquanto saboreávamos as deliciosas carnes, vindas do braseiro
escaldante.
Harmonização: Méri não teve dúvidas
em atribuir melhor harmonização do Relena com os queijos, mormente o Canastra
(lembrando que não sabíamos de suas identidades, até então). Sua sensibilidade
para a complexidade dos vinhos, tanto quanto sua percepção de harmonização, sempre
se revelou superior à minha, o que a torna mais apta para esta avaliação. Ao
saborear o Miolo, juntamente com as fatias de carne mal passada, achei-o mais
efetivo, certamente por conta de seu ataque e permanência na boca. Mas, devo
admitir: o Relena não fez feio, muito pelo contrário!
Mas, seria a terceira
degustação, realizada bem mais tarde, algumas horas após abertos, aquela
que efetivamente mostraria a qualidade dos dois vinhos: Já conhecendo suas
identidades, verificamos que ambos haviam melhorado sobremaneira, tornando-se
muito mais elegantes e arredondados. Isso mostrava, em definitivo, que o melhor momento dos Tannats brasileiros
ainda se dá muito tempo após abertos. Sua aspereza, ou sua dureza, são
consideravelmente abrandadas pelo passar das horas, enquanto suas frutas
encontram o oxigênio livre do ar e seu álcool se evapora um pouco, liberando
suas qualidades adormecidas.
Ambos tinham então melhorado seus taninos. Porém, para minha
surpresa, o Relena os revelava muito
superiores aos do Miolo, que ainda conservava frutas e acidez excessivas.
Não havia mais dúvidas: o Relena se mostrava superior, em diversos aspectos, ao
Miolo. Provavelmente, o clima fortemente estacional da Serra da Canastra seja
mais adequado do que o da Campanha, ou, pelo menos, na safra em questão (2013),
as uvas do Brasil Central haviam experimentado melhores condições do que
aquelas do extremo sul do Rio Grande. De todo modo, ambos ainda precisam ser
mais trabalhados, até que possam ser comparados com seus primos uruguaios.
Ficamos felizes de ver abrir-se o horizonte do Brasil
Central às possibilidades enológicas de qualidade. Quanto a mim, um amante
incondicional da Serra da Canastra, me enchi de gáudio, por ver seu Tannat
brilhar e, mais ainda, quando acompanhado do célebre queijo Canastra do Sr. Zé
Mário, de São Roque de Minas.
Todos achamos que o rótulo do Relena precisa melhorar muito,
para se tornar proporcional à qualidade de seu conteúdo. Rolha e lacre,
igualmente, ainda estão longe do ideal, de modo a enfrentar o mercado que,
muito seguramente, o aguardam em futuro muito próximo.
Que surpresa boa Orlando, ao pesquisar sobre o Relena, que degustaremos em breve em nosso passeio para a Serra da Canastra, encontrar sua apreciação junto à de Meri em um blog tão elegante! Obrigada!
ResponderExcluirOlá, caso veja essa msg, poderia entrar em contato? Gostaria de visitar a vinícola, mas não achei contato. O meu é 71 997112161 (Sophia). Obrigada!
ResponderExcluirDesculpe, somente vi agora. A vinícola mudou de dono e de nome. Perdi contato com ela, mas pretendo investigar isso, depois da pandemia controlada
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