O filósofo alemão Immanuel
Kant, que viveu no Século XVIII, formulava esta pergunta, que testava
questões morais, apelando à razão dos seres humanos, no sentido de refletirmos
se nossas ações serviriam como padrão de comportamento: “E se todos fizessem isso?” De acordo com Kant, cujos postulados
vigem até os dias atuais (ou, pelos menos deveriam!), bastaria nos fazermos
esta simples pergunta, para sabermos se nossas atitudes eram morais ou não. Gandhi teria dado uma resposta bem
simples, conquanto de forte conteúdo moral: “Faça de seu procedimento norma universal”.
A questão afligia os milhares de membros da Sociedade
Brasileira de Bromélias-SBBr, ainda nos anos de 1990, quando comecei
minha atuação, na Diretoria de Conservação da célebre entidade, no início dos
anos de 2000: Podemos ou não coletar plantas na natureza? Ainda não existiam
diplomas legais com o alcance da Lei do Crime Ambiental, ou da Lei dos Acessos,
que terminaram praticamente radicalizando o tema, algum tempo depois. Assim, o
dilema dos bromeliófilos e bromeliólogos era essencialmente moral. Ao integrar
os quadros da SBBr, a questão já havia sido amplamente discutida e, digamos
assim, praticamente resolvida, apesar de ter retornado à cena, alguns anos
depois, durante um importante evento nacional da SBBR sobre a conservação de
bromeliáceas, que reuniu autoridades científicas e conservacionistas.
O consenso era no sentido de que a coleta científica, ou com
finalidades essencialmente de conservação ex
situ, mesmo que em coleções privadas, representava atividade “tolerável”,
ao passo que a coleta praticada no sentido de formar estoques comerciais
representava extrativismo e, portanto, constituía crime ambiental
(poluição). A partir deste conceito, os colecionadores poderiam pessoalmente
recolher exemplares de bromélias, nos ecossistemas, desde que não formassem
estoques. Os coletores profissionais, por seu turno, estariam cometendo crimes
ambientais, quando pegassem bromélias ou quaisquer outras plantas, com objetivo
de fazer dinheiro com elas.
Tínhamos ainda, àquele tempo, diversos profissionais que
sobreviviam da coleta de orquídeas e bromélias, na natureza, vendendo-as para
empresas ou particulares. Eram os conhecidos “mateiros”, que, na verdade, ainda
atuam até hoje. A origem do nome é evidente: Mateiros seriam gente da floresta,
nascida e crescida em meio às atividades extrativistas, que reinaram no país,
durante séculos. Havia a ideia geral de que nossas matas, cerrados e campos
rupestres eram algo com dimensões infinitas e que teriam resiliência o bastante
para suportar a coleta de suas diversas essências, desde a madeira às plantas
ornamentais, refazendo-se continuamente de suas “pequenas” perdas.
Os conflitos têm sido imensos, desde então, gerando mágoas
insanáveis, de ambos os lados da questão, como ocorre na nefasta polarização
verificada entre agricultores e entidades de defesa dos direitos das minorias –
biodiversidade inclusa! Mas, a economia de escala produziu uma guinada
irreversível e transformou a humanidade numa máquina de consumo descontrolado,
na qual milhares, milhões de pessoas, cada uma com seus interesses pessoais, busca
toda e qualquer coisa que lhe dê prazer adquirir (ou coletar), desde iphones e
Ferraris, até orquídeas e bromélias. Smartphones costumam ter modelos novos,
quase todos os meses; Ferraris nem tanto, mas jamais faltarão reluzentes
carrões, novinhos em folha, para apaziguar as ansiedades consumistas da
população; Já no caso das plantas ornamentais... A coisa é bem diferente!
Ainda que surjam novidades cultivadas, a cada dia mais belas
e bem trabalhadas, especialmente nessas duas importantes famílias botânicas –
bromeliáceas e orquidáceas – os amantes de plantas ainda cobiçam raridades que
esperam nos recônditos do sertão nacional, prontinhas para serem encontradas
por (milhares de) colecionadores sequiosos. Cada um pensa que a sua coleta em
nada afetará a sobrevivência das populações naturais. Pois, em meio a esta
verdadeira pilhagem que vem sendo feita, geralmente por puro capricho pessoal,
sem qualquer desígnio científico, é chegada a hora de nos fazermos a velha
pergunta de Kunt: “E se todos fizessem
isso?”
Temos distorcido egoisticamente os preceitos filosóficos de
outro pensador mais moderno – Peter
Singer – agindo com uma ideia desconectada da realidade econômica atual. Em
vez de nos fazermos a pergunta racional de Kunt, ou nos questionarmos se nos
cabe tomar iniciativas solidárias, uma vez que alguém outro poderá tomá-las por
nós, como levantou Singer, oferecemos uma resposta à priori, que é dada somente
para satisfazer nossa vil consciência e revestir de moral o que não é: “Ora,
sou apenas eu a fazer isso!”
Nalguns casos ainda mais amorais, afirmamos: “Se eu não
coletar, virá alguém mais e o fará!” E assim seguimos em nosso assalto
interminável à mãe natureza, pensando apenas em nossos desejos, sem perceber
que estamos aprisionados num ciclo sem fim de desejos que cultivamos, atendemos
e voltamos a ter novos desejos ainda mais ambiciosos. Isso não chega a ser
novidade e Arthur Schopenhauer já
diagnosticara isso, ainda no alvorecer do Século XIX.
Então, quando estivermos caminhando entre os soberbos blocos
rochosos da Serra dos Pirineus, em Goiás, e avistarmos uma população de Tillandsia barrosoae, pequena
bromélia bronzina, que somente ocorre neste lugar, entre cactáceas, clusiáceas
e marcgraviáceas tortuosas, sentindo aquele desejo incontido de possuir um
exemplar; Ou quando visitarmos os campos rupestres da Chapada Diamantina,
sentindo-nos atraídos por magníficas e raras orquídeas como Hadrolaelia sincorana, que
somente vegeta nos troncos grossos de veloziáceas endêmicas; que tal pensarmos:
“E se todos fizessem isso?”
Não sou nenhum santo! Já coletei plantas, desde menino,
inicialmente atendendo ao desejo de possuí-las. Mas, procurei evoluir e
tornar-me mais civilizado. Isso incluiu despir-me, progressivamente, dos
desejos infantis e insaciáveis de posse, ao menos quando isso envolvia a ética.
Afinal, na maior parte das vezes, levamos essas joias para casa, pensando que
saberemos cultivá-las, apenas para vê-las fenecer e morrer, algum tempo depois.
Nos dias de hoje, faço-me imediatamente a pergunta: “E se todos fizessem isso?” A propósito, devo lembrar ainda mais
uma pergunta ser feita: “E se eu for flagrado pelas autoridades transgredindo a
Lei?” Vale fazer as duas perguntas, simultaneamente, lembrando que acabamos de
celebrar o dia dos fotógrafos, que “caçam” belas imagens dessas mesmas plantas,
deixando-as lá, para reproduzirem e se perpetuarem.
BOM SAFÁRI FOTOGRÁFICO A TODOS.
A magnífica bromélia Hohenbergia castellanosii do Recôncavo Baiano está no limiar do seu desaparecimento, por força de sua intensa coleta, para abastecimento do mercado paisagístico
As populações naturais de Hohenbergia castellanosii são de distribuição complexa e não suportam a coleta extrativista, realizada à exaustão
A pequena e delicada bromélia Tillandsia barrosoae somente ocorre nos afloramentos da Serra dos Pirineus, em Goiás, infelizmente próxima demais de Brasília. Essa proximidade vem sendo fatal, pela facilidade com que se visita o local, propiciando coleta amadorística e profissional
Tillandsia barrosoae não é uma planta numerosa, em seu habitat. Se cada visitante resolver coletar um exemplar que seja, ela desaparecerá rapidamente
O autor do blog, na Chapada Diamantina, junto ao jardim natural de orquídeas e bromélias da transição Caatinga - Cerrado - Mata Atlântica: Melhor observá-las na natureza, onde encontram seu habitat ideal. Em nossas casas, dificilmente sobreviverão
Orquidário do estado de São Paulo, onde as mais belas plantas são produzidas massivamente, propiciando beleza e adaptação para nosso cultivo
adorei parabéns
ResponderExcluiradoooooooooooooooooooooooooooooooooooooorei........
ExcluirObrigado, Jeovana. Aproveite para divulgar, com seus conhecidos. Pode ser que surta algum resultado, para ajudar na conservação de nossa natureza.
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