Em meus passeios pelos
estonteantes museus britânicos, onde se visita gratuitamente alguns dos mais
importantes tesouros culturais da humanidade, encontrei meu grande amigo Felipe Costa, que andava em frente a
uma das galerias de um desses museus, com um ar meio abichornado. Indaguei a
ele qual a razão de seu semblante preocupado:
- Salve, Costa, que acervo
artístico, não?
- É sim, tudo isso aqui
disponível aos jovens ingleses, sem qualquer custo! Que responsabilidade com a
educação, com a cultura...
- Então, oras, por que este
semblante sério? O que te aflige?
- Sabe o que é, amigo? É que eu
acho que não fui muito correto, há alguns minutos...
- O que é isso? Não furou a fila,
não é? Os britânicos não gostam dessas coisas.
- Por certo que não, o amigo sabe
de minha determinação ética. É que saí tirando umas fotos, havia alguns outros
estrangeiros fazendo o mesmo, me animei... clic, clic, clic... Até enxergar
aquele cartaz ali, veja.
- PROIBIDO FOTOGRAFIAS...
Compreendo. Bem, afinal, ninguém está a fiscalizar... Outros turistas fazem o
mesmo...
- Mas, você me conhece: não sou
os outros, sabe que oriento meu procedimento pensando no que é certo, não
naquilo que os outros fazem.
Ruborizei com minhas concessões.
Felipe é um garoto ético, age no sentido de que seus procedimentos representem
norma universal... Gandhi. Eu mesmo, aqui em meu blog (http://orlandograeff.blogspot.com.br/search?q=e+se+todos+fizessem+isso) uma dessas vezes, aludi
aos postulados de Kant, que perguntava provocativo: “e se todos fizessem isso?” Um pouco envergonhado de minha
leniência ética, refleti um pouco sobre o impasse moral de meu jovem amigo.
Felipe é um homem jovem,
autêntico representante das novas gerações que herdarão o mundo. Tem pouco mais
de vinte anos. O que seriam vinte aninhos, diante de minha longa experiência de
cinquentão? TUDO, respondo eu! O frescor ético do meu jovem amigo é o azeite
que lubrifica nossa sociedade viciada e cheia de, digamos assim, concessões.
Estragados pela educação gradualmente destituída da ética, pagamos propina ao
guarda, furamos fila, estacionamos na vaga dos deficientes, sujamos tudo à
nossa volta (no sentido amplo do que isso significa). Felipe Costa, não, ele
acha que isso é errado. Se é errado, por que fazer?
Tratei de mitigar as angústias de
meu amigo, sem deixar de concordar com seus princípios, dizendo a ele que nem
precisaria se dar ao trabalho de fotografar tantas telas e esculturas. Afinal,
na internet, ele poderia obter imagens de alta qualidade daquelas obras, além
de fichas técnicas sobre elas... Há até o site dos museus! Seguimos adiante,
ele sem fotografar mais nada e eu pensando com meus botões sobre a lição que
tivera de meu jovem amigo.
Algumas horas depois, vagando
pelas tranquilas e bem arrumadas ruas do bairro de Belgravia, onde aprecio ficar,
quando visito Londres, tive outro sinal de como é possível situar em nós
mesmos, seres humanos ditos civilizados, nossos anjos e nossos demônios. Ao
aguardar para atravessar uma rua muito calma, achei por bem respeitar o sinal
de trânsito, mesmo quase não havendo automóveis. Quando o sinal finalmente
abriu para mim, fazendo-me ensaiar os primeiros passos para atravessar, eis que
enxergo um ciclista que se aproximava, ostentando seu capacete e seus elegantes
trajes desportivos. Cuidado, disse a mim mesmo, ele vai passar correndo e me
atropela!
Foi quando reencontrei meus anjos
e meus demônios: orientado por meus maliciosos diabinhos brasileiros, que nos
fazem treinados em toda sorte de pilantragens e incivilidades triviais,
preveni-me contra uma suposta agressividade do ciclista inglês, que não veio: o
rapaz (também ele um jovem, como Felipe) parou antes da faixa de pedestres e
assim permaneceu, até muito tempo após minha passagem, retomando suas
pedaladas, tão logo lhe surgiu o sinal verde.
Em Londres, devo dizer, para-se
ao sinal vermelho, esteja você num automóvel, esteja você numa bicicleta! É a
norma, é a lei. Se o ciclista não parasse, TALVEZ fosse multado, pois sim, há
multas para isso, na capital britânica. Mas, não foi o caso. A rua estava quase
deserta, não havia qualquer policial próximo e, mesmo que houvesse câmeras
(pois que as há às centenas, por todos os lados), o rapaz não tinha qualquer
placa de identificação à mostra em seu “camelo”. Por que parou ele, então, se
os seu diabinho particular talvez lhe falasse ao ouvido: “vai lá, passa o
sinal, que vai perder tempo aí parado”?
Ocorre que, em países
civilizados, que já passaram pelos tempos de pátria educadora, há muitas
centenas de anos, para viver numa fase de PÁTRIA EDUCADA, vive-se a ética com ênfase,
devidamente transformada no “anjinho”, que lhes vai ao ombro, fazendo-os
perguntar de forma inversa àquela sugerida pelo diabinho: “SE É O CERTO, POR QUE NÃO FAZÊ-LO?”
Terminando minha reflexão, voltei
ao que me dissera Felipe, horas antes, na galeria do museu. Se um procedimento
é certo, por que DIABOS não fazê-lo? Mesmo que não haja alguém observando, um
guarda de trânsito ou até mesmo um fiscal de museu, se há uma regra, se dispõe
uma lei, devemos respeitá-las instintivamente, sem escutar as bobagens
segredadas de nossos ombros, pelo demoniozinho impertinente que vive em todos
os humanos. Foi o que se propôs a fazer Felipe, foi o que fez o ciclista
londrino.
Afirmamo-nos CIVILIZADOS,
frequentemente apontado o dedo aos infratores pelos seus deslizes, em geral os
grandes e notáveis. Mas, com grande frequência... Ou melhor, com GRADUAL
FREQUÊNCIA, vamos fazendo concessões as mais diversas, em nossa PÁTRIA
DESEDUCADA, pensando sempre em nós mesmos, em nossa comodidade, na praticidade
da vida e, por fim, em interesse próprio. Instigados pelos nossos demônios,
estamos caminhando ladeira abaixo em nossa ética, pois viramos uma sociedade
autista, onde cada um somente olha para sua barriga, evitando os olhares pidões
dos outros. Certo personagem cômico, de uma famosa revista americana, indagava:
“what, me worry?” (O quê, eu me
preocupar?).
A lei é o complexo das condições
existenciais da sociedade. Isso significa que, numa democracia, os
representantes do povo se reúnem, debatem, escutam especialistas sobre os mais
diversos assuntos e, por fim, elaboram as leis, que representam o pacto moral
sobre o que se pode ou não fazer; sobre o que se deve ou não fazer; e, é claro,
como punir aqueles que não respeitam a lei. Muito simples: a força policial
cuida para que os cidadãos cumpram as leis (é o que os ingleses chamam – enforcement); o poder judiciário julga e
eventualmente condena aqueles que transgridem esse código maior de
procedimento. Mas, não há um policial para cada habitante, nem tampouco
batalhões de juízes a dirimir os “casos”... E nem precisaria haver!
Não serão nunca suficientes os
milhares, milhões de policiais, para fiscalizar e coibir os atos lesivos à lei
praticados por incontáveis cidadãos, se esses resolverem perseguir seus únicos
interesses e vontades pessoais, atendendo aos “conselhos” do diabinho que lhes
monta ao ombro. A ética é exatamente a noção do indivíduo de que existe um
código de procedimentos, que é condição fundamental da existência da
civilização. O indivíduo ético cumpre as leis, por que entende que isso é
necessário – escuta seus anjos, em vez dos demônios. Foi como agiu Felipe, foi
o que fez o ciclista de Londres!
Obrigado, Felipe, por me fazer
lembrar que devo rejuvenescer à sua consciência do que é ético, renunciando aos
conselhos impertinentes de meus demônios envelhecidos, que me querem
incivilizado. Sou brasileiro, sim, mas não creio que seja esta uma “qualidade”
de nosso povo: sermos o país do jeitinho, a pátria da deseducação, a ladeira
descendente da civilização, ao sabor da renúncia endêmica à ética. Bem, se o
cartaz do museu determina suas normas – PROIBIDO FOTOGRAFAR – vamos guardar
nossas câmeras; se o sinal está vermelho, vamos parar, mesmo que não haja um
guarda anotando nossas placas. Somos nós mesmos os responsáveis por nossos
anjos e demônios.
jovens aguardam o sinal abrir, para prosseguir com suas bicicletas, em Oxford, na Inglaterra: fazem isso simplesmente por que... é o certo!
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