sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O PARQUE DAS BROMÉLIAS NA PONTA DO GARCÊS - RELATOS DE UMA GUERRA


          O salão estava completamente lotado. Mais de seiscentas pessoas se aboletavam num clube da minúscula e atraente cidade baiana de Jaguaripe, no estuário do rio do mesmo nome, ao sul da ilha de Itaparica, no Recôncavo Baiano. Chegamos de barco, único meio de transporte viável naquela região, vindos da Ponta do Garcês, que era o coração da questão que se discutiria ali, naquele verdadeiro circo de operações que a gigantesca Petrobras armara, no diminuto e bucólico vilarejo. Num imenso telão, alternavam-se gloriosas imagens que ufanavam a poderosa empresa petrolífera, evocando todos os supostos benefícios promovidos por ela ao Brasil: Modernos petroleiros singrando os mares, abarrotados de óleo; Monumentais plataformas esbaforindo fogos progressistas de suas torres; Oleodutos que seguiam ao infinito. Tudo isso intercalado com imagens de gente humilde sorridente e feliz, além de tartarugas marinhas e florestas verdejantes, bem ao estilo do governo petista, que ainda acelerava em sua escalada de fortalecimento.

          Nosso anfitrião Sérgio Tourinho, experiente advogado e ex-deputado baiano, ao meu lado, esbravejava furibundo que aquilo era abuso de poder econômico e, sobretudo, uma atitude ilegal, no âmbito de uma audiência pública, na qual se submeteria um projeto dessa mesma empresa: Um gasoduto que ligaria as plataformas de extração, situadas ao largo de Morro de São Paulo, alguns quilômetros dali, à localidade de São Francisco do Conde, no fundo da Baía de Todos os Santos, onde o gás seria industrializado. Eu também pensava assim, mas já esperava este golpe baixo, havia alguns dias. Afinal, não se passavam dez minutos, sem que as emissoras de TV baianas divulgassem vídeos semelhantes, enaltecendo o valor da Petrobras para o futuro da Bahia.

          Mas, não havia como deixar de manter a calma. O ambiente era tenso para a petrolífera, não apenas pela nossa presença, que já havia sido detectada pela sua “inteligência”, através de sua rede de informantes, mas também por que a esmagadora maioria da audiência era composta por pescadores e caiçaras, apavorados com as possíveis consequências daquele empreendimento sobre sua fonte de sustento – a pesca. A Petrobras, na verdade, se preparara para o enfrentamento “no mar”, trazendo complexos estudos oceanográficos que, como seria de imaginar, comprovariam não haver nenhuma ameaça à ecologia costeira. Tudo estava pronto para silenciar os pobres pescadores, inclusive com os recursos promissoramente nababescos, que seriam derramados para compensar os “pequenos transtornos ocasionados pelas obras”.
Só que, para o azar da multinacional estatal, eles não haviam se preparado para combater “em terra”. Acontece que o tal gasoduto atravessaria de cheio a Ponta do Garcês, um belíssimo e bem conservado conjunto de restingas arenosas, que fecham a barra do rio Jaguaripe, quase tocando a localidade de Cacha Pregos, no sul da ilha de Itaparica. Mal sabiam da carta que possuíamos na manga, que viraria o jogo, na discussão do megalômano projeto desenvolvimentista. “Em terra”, nossa munição era mais poderosa. A história de nossa participação neste caso começara bem antes, em 2001, e tivera como motivação interesses diametralmente inversos aos da Petrobras. Envolviam a conservação da natureza da Ponta do Garcês, como se verá, a seguir.


Da capa do Diagnóstico Ambiental da Ponta do Garcês - 2001


As magníficas bromélias Hohenbergia castellanosii, que se tingem de vermelho e alaranjado, durante sua fase reprodutiva, são a marca registrada da Ponta do Garcês e do Parque das Bromélias. Suas populações apresentam dinâmica bastante complexa e somente vegetam em faixas determinadas das restingas baianas



Acima - Imagem aérea da Ponta do Garcês, no Recôncavo Baiano: Do alto, a área sugere aspecto empobrecido, impressão que desaparece imediatamente, para quem desembarca em meio ao Parque das Bromélias – Abaixo





          No início de 2001, fui convidado por um famoso escritório de arquitetura do Rio, para quem costumava prestar assessoria, a realizar um estudo diagnóstico sobre uma área situada no Recôncavo Baiano. Aquele ano foi especialmente agitado, em minha vida profissional e ativista na conservação. Poucos meses depois de iniciar os estudos, para a De Fournier & Associados, viria a assumir a presidência da Sociedade Brasileira de Bromélias-SBBr, o que me levou a tratar ainda mais de perto com essas plantas mágicas de nossa flora, que teriam papel fundamental no posterior deslinde da questão da Petrobras, na Bahia.  Após uma proveitosa expedição à Ponta do Garcês, onde se pretendia implantar um condomínio de alto padrão,  elaborei o Diagnóstico Ambiental da Ponta do Garcês - 2001, que pode ser encontrado no portal científico Pluridoc, no link:


          O estudo passou um pente fino da natureza da propriedade, que abarcava mais de 3.000ha de terras praticamente virgens, mostrando admirável riqueza florística, definindo áreas prioritárias para a conservação e norteando o futuro desenvolvimento.

          A Ponta do Garcês tinha atravessado longa história de ocupação, na qual havia sido criado gado, de forma muito rudimentar, além do cultivo de cocos e dendê. Até mesmo uma base avançada da força aérea americana tinha sido ali instalada, nos tempos da Segunda Grande Guerra, restando apenas vestígios da pista e da casa de rádio. Quando começamos o estudo, ainda se extraía a fibra da piaçava, retirada da palmeira Attalea funifera, que é endêmica da região. Mas, o que mais me surpreendeu, quando desembarquei na sede da fazenda, foi a informação sobre a existência de um Parque das Bromélias, de que tanto falavam os funcionários da Ponta do Garcês, que decantavam o nome do proprietário da área, na conta de um defensor da natureza – Luiz Raimundo Tourinho Dantas, mais conhecido como Dr. Mundico.

          A história do Parque das Bromélias viria a se explicar, muito justificadamente, na tarde do mesmo dia, quando fomos conduzidos, na carroceria de uma Toyota Bandeirante, até o coração da Ponta do Garcês: Ali estava, com bastante certeza, um dos ecossistemas naturais litorâneos da Bahia mais conservados, um verdadeiro paraíso de bromeliáceas e orquidáceas, cujas populações praticamente intactas se agrupavam em diversas tipologias de vegetação de restingas, que se estendiam por centenas de hectares, dividindo espaço com florestas, manguezais e toda sorte de quadros impressionantes.

          Quanto ao Dr. Mundico, somente poderei lembrá-lo como um sujeito muito especial, um tipo de “painho” baiano, muito simples, mas incorporado na figura aristocrática de um homem de extrema cultura e absoluta paixão pela Ponta do Garcês, por sua flora, por suas bromélias. Tinha sido ele o responsável pela denominação informal da área central da Ponta do Garcês, cuja justificativa eu acabava de conferir: Parque das Bromélias. Acompanhavam-me, nesta aventura descobridora, a bióloga Ana Maria Argôlo, que já me estivera comigo, em algumas outras expedições, e o técnico agrícola Emerson Pereira da Silva. Depois de sermos ciceroneados pelo Dr. Mundico, que nos mostrou cada trecho do Parque das Bromélias, passamos alguns dias a vasculhar sua riqueza florística, até que fosse gerado o referido Diagnóstico Ambiental de 2001.

          A impressionante riqueza natural da Ponta do Garcês não seria assunto cabível para um texto tão breve como este. Não posso deixar de recomendar a leitura do referido Diagnóstico Ambiental-2001 disponível na internet. Apenas para figurar um pouco do que lá se encontra,  tão perto de Salvador, mas esplendidamente conservado, devo citar as únicas populações intactas da bromélia Hohenbergia castellanosii, hoje quase desaparecida, na região, por conta de sua coleta indiscriminada. Mas, uma infinidade de outras bromeliáceas importantes encontra lá abrigo: Aechmea blanchetiana, A. marauensis, A. amicorum, Hohenbergia stellata, além da gigantesca Aechmea multiflora. Dentre as orquídeas, impressiona a população de Encyclia oncidioides, cuja variação local empresta a impressão de se tratarem de várias espécies diferentes. Cattleya aclandiae, uma pequena joia botânica, vegeta até mesmo nas árvores intrincadas dos manguezais. Mas, havia uma surpresa, que viria a representar verdadeira arma secreta, no embate com a Petrobras pela conservação da Ponta do Garcês, em 2003: Era uma espécie nova de bromélia que somente viria a ser descrita para a ciência alguns anos depois, a partir de material enviado por mim aos cientistas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro – Hohenbergia carnavalii.

          Hohenbergia carnavalii é uma bromélia muito espinescente, que somente medra sob as florestas encharcadas de piaçavas, e que emite linda inflorescência encarnada, com flores minúsculas e arroxeadas. Não temos notícias de nenhuma outra população desta planta, fora da Ponta do Garcês. A Ponta do Garcês é uma área geologicamente nova, formada pela sedimentação do estuário do rio Jaguaripe, durante o período recente – Holoceno – contando não mais do que seis mil anos. Por isso, convergiram para lá espécies vindas da Cadeia do Espinhaço, do Cerrado e da Mata Atlântica, formando um inimitável pool de floras, que se encontram em plena efervescência genética.

Aspecto da bromélia Hohenbergia carnavalii, uma espécie restrita à Ponta do Garcês, que foi uma das armas secretas para a conservação do Parque das Bromélias


          Ainda durante 2001, tive a grata oportunidade de apresentar os resultados do Diagnóstico da Ponta do Garcês ao público, durante evento da SBBR, realizado no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Tinha gravado, num PPS (Power Point) bem ilustrado, toda a natureza da Ponta do Garcês, assim como os partidos que me haviam levado a sugerir um zoneamento ambiental, com o claro objetivo de subsidiar seu possível desenvolvimento. Entre os principais argumentos, além da riqueza florística singular, que incluía espécies ainda não descritas pela ciência, havia uma delicada questão geomorfológica. Ocorre que o PARQUE DAS BROMÉLIAS existia por força de uma extensa área dominada por uma rocha de arenito de praia, que mantinha o lençol freático suspenso, poucos centímetros abaixo da superfície. SUA BIODIVERSIDADE ESTAVA INDISSOCIAVELMENTE LIGADA À MANUTENÇÃO DESSE AQUÍFERO.

          Na medida em que apresentávamos esse mesmo PPS do Jardim Botânico, ao longo dos QUINZE MINUTOS (sim, somente quinze minutos), que nos foram dados, a muito contragosto, pelos organizadores do evento de Jaguaripe, a multidão arregalava os olhos e a equipe técnica da Petrobrás entrava em pânico. Os semblantes dos técnicos, que estavam na mesa, foram gradualmente se despindo do ar arrogante, com o qual haviam adentrado o salão, para se tomar de ódio lancinante, segundo me relatou Sérgio Tourinho, que acompanhava tudo, da plateia. Numa apresentação de mais de trinta minutos, eles haviam mostrado o PARQUE DAS BROMÉLIAS como uma “área degradada”, nada mais que um areal inútil, que nada sofreria, com a passagem do imenso tubulão. Para isso, tinham trabalhado em escala geográfica, exibindo imagens de satélite, sem NUNCA terem desembarcado na Ponta do Garcês, para conferir as informações remotas.

          Dr. Mundico morreu pouco antes de ser marcada a audiência pública da Petrobras, em 2003. No Rio de Janeiro, fui contatado pela família, com a triste notícia, acompanhada da informação de que ele afirmara, poucos dias antes, que “somente o Orlando Graeff teria possibilidade de ajudar, na luta pela salvação do PARQUE DAS BROMÉLIAS”. Como rejeitar a missão? Peguei meus arquivos sobre a Ponta do Garcês e segui apressado a Salvador, onde era aguardado pelo Dr. Sérgio Tourinho, sobrinho do Dr. Mundico, que advogaria na questão e acabou se tornando grande amigo. Junto com Sérgio e seu sócio Anibal Brandão, seguimos correndo para a Ponta do Garcês, ainda na véspera da audiência pública.

          Os estragos de nossas “baterias terrestres” sobre as hostes inimigas foi definitivo: Se o gasoduto atravessasse a Ponta do Garcês, pelo PARQUE DAS BROMÉLIAS, como estava projetado, acarretaria a drenagem do lençol d’água de que falamos, ocasionando seu rebaixamento e consequente extinção de sua flora – inclusive de espécies endêmicas e desconhecidas. Os Ministérios Públicos Federal e Estadual da Bahia, que se encontravam presentes, reagiram de pronto e a audiência pública se viu arruinada. Os pescadores ovacionaram nossa atuação e, na manhã seguinte, os dois Ministérios Públicos efetuaram uma visita ao PARQUE DAS BROMÉLIAS.

          Cerca de um mês após essa emocionante aventura, recebi um email de Sérgio Tourinho, acompanhado de uma matéria de jornal baiano: “O presidente da Petrobras determinara a alteração de traçado do gasoduto de S. F. do Conde, para que não afetasse o Parque das Bromélias, na Ponta do Garcês”. Mesmo reclamando do imenso custo financeiro da mudança, eles admitiam a importância ecológica do lugar. Nossa missão havia sido cumprida e as bromélias e orquídeas da Ponta do Garcês teriam sobrevida, permitindo que a posteridade pudesse estudar sua ecologia complexa, na qual reina magnânima a imensa Hohenbergia castellanosii. Neste instante, relembrei o Dr. Mundico e fiz um pensamento positivo a ele e à oportunidade de termos, juntos, deixado nossa marca conservacionista, na história natural da Bahia... E do Brasil.


Acima – Orlando Graeff ao lado de uma imensa bromélia Aechmea multiflora, nas restingas arbóreas da Ponta do Garcês. Sua inflorescência chama atenção, pela forma e tamanho – Abaixo



A Seguir – Ana Argôlo e Emerson P. da Silva, meus companheiros de excursões no Parque das Bromélias




Aspectos da paisagem da Ponta do Garcês, mostrando o arenito de praia, que aflora na costa e domina a área central da restinga.





AcimaCryptanthus lacerdae no solo da mata de piaçava



AcimaEpistephium lucidum, uma orquídea que vegeta nos campos limpos da Ponta do Garcês
AbaixoEpidendrum orchidiflorum, outra orquídea dos campos alagáveis da restinga






AcimaEpidendrum cinnabarinum cresce em meio à vegetação intrincada da Ponta do Garcês
AbaixoCattleya aclandiae é uma minúscula joia do Parque das Bromélias e vegeta até mesmo em meio aos manguezais da Ponta.




Abaixo – Orlando Graeff posa junto à conhecida bromélia Aechmea blanchetiana, vulgarmente conhecida como bromélia-porto-seguro, bastante comum em cultivo e nativa da Ponta do Garcês;






4 comentários:

  1. Orlando Graeff, o senhor é um gênio!!!
    Nós temos uma biodiversidade tão rica, tão exuberante, mas não temos muitas pessoas como o senhor. Por isso, estamos jogando a Mata Atlântica fora e transformando a Amazônia em pasto. Falta gente bem formada, falta gente com coragem para enfrentar as especulações. E pensar que perderíamos esse tesouro ecológico para a especulação. Eu gostaria de saber calcular o preço de todo esse desastre ambiental que ocorre no Brasil. Talvez não seja possível recuperar os efeitos de toda essa ignorância ambiental. Nós temos o maior tesouro do mundo: a água e em abundância.
    Entrei nesse blog buscando informações sobre a Cattleya aclandiae. Gosto muito dessa espécie e queria informações sobre seu habitat, a fim de extrair informações adaptáveis ao cultivo. Fico feliz de saber que ainda resiste na natureza, apesar de informações procedentes de Salvador/BA darem conta da venda de exemplares nativos.
    Muito obrigado pela coragem e determinação na defesa desse local maravilhoso!!!

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    1. Caro Fernando, desculpe não ter visto antes sua mensagem, pois andava longe de casa. Obrigado pelos elogios. É claro que a gente sempre se sente bem em saber que as pessoas reconhecem nossos esforços. Apenas desculpe não ter muitos dados de cultivo de Cattleya aclandiae, neste momento, pois ando envolvido na conclusão de uma extensa obra de Fitogeografia, em que a escala é bem diferente. Mas, dependendo de onde estás, posso garantir: Nada de frio para ela! Bastante umidade e calor... De resto, os mesmos cuidados das demais bifoliadas. Boa sorte e abraços

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  2. Oi gostaria de ter informações sobre uma bromélia que tem nas matas da região que eu moro (no oeste paulista), nunca encontrei nada sobre ela na internet, poderia me ajudar a identifica-la? me mande um e-mail por favor? marosadaponte@hotmail.com

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    1. Olá, Marilaine. Olha, essa coisa de identificar plantas é mesmo séria! Botânicos têm aversão a identificações remotas, pelo risco de falar bobagem e propalar falsidades. Mas, vou entrar em contato e ver se você envia alguma imagem. Se for coisa bastante clara, eu tento, OK? Na sua região, as espécies são mais ou menos conhecidas. Abraços e obrigado por ter prestigiado o blog, que anda meio devagar, pelas razões que falei ao amigo Fernando: Conclusão de um livro.

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