sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

O PARQUE DAS BROMÉLIAS NA PONTA DO GARCÊS - RELATOS DE UMA GUERRA


          O salão estava completamente lotado. Mais de seiscentas pessoas se aboletavam num clube da minúscula e atraente cidade baiana de Jaguaripe, no estuário do rio do mesmo nome, ao sul da ilha de Itaparica, no Recôncavo Baiano. Chegamos de barco, único meio de transporte viável naquela região, vindos da Ponta do Garcês, que era o coração da questão que se discutiria ali, naquele verdadeiro circo de operações que a gigantesca Petrobras armara, no diminuto e bucólico vilarejo. Num imenso telão, alternavam-se gloriosas imagens que ufanavam a poderosa empresa petrolífera, evocando todos os supostos benefícios promovidos por ela ao Brasil: Modernos petroleiros singrando os mares, abarrotados de óleo; Monumentais plataformas esbaforindo fogos progressistas de suas torres; Oleodutos que seguiam ao infinito. Tudo isso intercalado com imagens de gente humilde sorridente e feliz, além de tartarugas marinhas e florestas verdejantes, bem ao estilo do governo petista, que ainda acelerava em sua escalada de fortalecimento.

          Nosso anfitrião Sérgio Tourinho, experiente advogado e ex-deputado baiano, ao meu lado, esbravejava furibundo que aquilo era abuso de poder econômico e, sobretudo, uma atitude ilegal, no âmbito de uma audiência pública, na qual se submeteria um projeto dessa mesma empresa: Um gasoduto que ligaria as plataformas de extração, situadas ao largo de Morro de São Paulo, alguns quilômetros dali, à localidade de São Francisco do Conde, no fundo da Baía de Todos os Santos, onde o gás seria industrializado. Eu também pensava assim, mas já esperava este golpe baixo, havia alguns dias. Afinal, não se passavam dez minutos, sem que as emissoras de TV baianas divulgassem vídeos semelhantes, enaltecendo o valor da Petrobras para o futuro da Bahia.

          Mas, não havia como deixar de manter a calma. O ambiente era tenso para a petrolífera, não apenas pela nossa presença, que já havia sido detectada pela sua “inteligência”, através de sua rede de informantes, mas também por que a esmagadora maioria da audiência era composta por pescadores e caiçaras, apavorados com as possíveis consequências daquele empreendimento sobre sua fonte de sustento – a pesca. A Petrobras, na verdade, se preparara para o enfrentamento “no mar”, trazendo complexos estudos oceanográficos que, como seria de imaginar, comprovariam não haver nenhuma ameaça à ecologia costeira. Tudo estava pronto para silenciar os pobres pescadores, inclusive com os recursos promissoramente nababescos, que seriam derramados para compensar os “pequenos transtornos ocasionados pelas obras”.
Só que, para o azar da multinacional estatal, eles não haviam se preparado para combater “em terra”. Acontece que o tal gasoduto atravessaria de cheio a Ponta do Garcês, um belíssimo e bem conservado conjunto de restingas arenosas, que fecham a barra do rio Jaguaripe, quase tocando a localidade de Cacha Pregos, no sul da ilha de Itaparica. Mal sabiam da carta que possuíamos na manga, que viraria o jogo, na discussão do megalômano projeto desenvolvimentista. “Em terra”, nossa munição era mais poderosa. A história de nossa participação neste caso começara bem antes, em 2001, e tivera como motivação interesses diametralmente inversos aos da Petrobras. Envolviam a conservação da natureza da Ponta do Garcês, como se verá, a seguir.


Da capa do Diagnóstico Ambiental da Ponta do Garcês - 2001


As magníficas bromélias Hohenbergia castellanosii, que se tingem de vermelho e alaranjado, durante sua fase reprodutiva, são a marca registrada da Ponta do Garcês e do Parque das Bromélias. Suas populações apresentam dinâmica bastante complexa e somente vegetam em faixas determinadas das restingas baianas



Acima - Imagem aérea da Ponta do Garcês, no Recôncavo Baiano: Do alto, a área sugere aspecto empobrecido, impressão que desaparece imediatamente, para quem desembarca em meio ao Parque das Bromélias – Abaixo





          No início de 2001, fui convidado por um famoso escritório de arquitetura do Rio, para quem costumava prestar assessoria, a realizar um estudo diagnóstico sobre uma área situada no Recôncavo Baiano. Aquele ano foi especialmente agitado, em minha vida profissional e ativista na conservação. Poucos meses depois de iniciar os estudos, para a De Fournier & Associados, viria a assumir a presidência da Sociedade Brasileira de Bromélias-SBBr, o que me levou a tratar ainda mais de perto com essas plantas mágicas de nossa flora, que teriam papel fundamental no posterior deslinde da questão da Petrobras, na Bahia.  Após uma proveitosa expedição à Ponta do Garcês, onde se pretendia implantar um condomínio de alto padrão,  elaborei o Diagnóstico Ambiental da Ponta do Garcês - 2001, que pode ser encontrado no portal científico Pluridoc, no link:


          O estudo passou um pente fino da natureza da propriedade, que abarcava mais de 3.000ha de terras praticamente virgens, mostrando admirável riqueza florística, definindo áreas prioritárias para a conservação e norteando o futuro desenvolvimento.

          A Ponta do Garcês tinha atravessado longa história de ocupação, na qual havia sido criado gado, de forma muito rudimentar, além do cultivo de cocos e dendê. Até mesmo uma base avançada da força aérea americana tinha sido ali instalada, nos tempos da Segunda Grande Guerra, restando apenas vestígios da pista e da casa de rádio. Quando começamos o estudo, ainda se extraía a fibra da piaçava, retirada da palmeira Attalea funifera, que é endêmica da região. Mas, o que mais me surpreendeu, quando desembarquei na sede da fazenda, foi a informação sobre a existência de um Parque das Bromélias, de que tanto falavam os funcionários da Ponta do Garcês, que decantavam o nome do proprietário da área, na conta de um defensor da natureza – Luiz Raimundo Tourinho Dantas, mais conhecido como Dr. Mundico.

          A história do Parque das Bromélias viria a se explicar, muito justificadamente, na tarde do mesmo dia, quando fomos conduzidos, na carroceria de uma Toyota Bandeirante, até o coração da Ponta do Garcês: Ali estava, com bastante certeza, um dos ecossistemas naturais litorâneos da Bahia mais conservados, um verdadeiro paraíso de bromeliáceas e orquidáceas, cujas populações praticamente intactas se agrupavam em diversas tipologias de vegetação de restingas, que se estendiam por centenas de hectares, dividindo espaço com florestas, manguezais e toda sorte de quadros impressionantes.

          Quanto ao Dr. Mundico, somente poderei lembrá-lo como um sujeito muito especial, um tipo de “painho” baiano, muito simples, mas incorporado na figura aristocrática de um homem de extrema cultura e absoluta paixão pela Ponta do Garcês, por sua flora, por suas bromélias. Tinha sido ele o responsável pela denominação informal da área central da Ponta do Garcês, cuja justificativa eu acabava de conferir: Parque das Bromélias. Acompanhavam-me, nesta aventura descobridora, a bióloga Ana Maria Argôlo, que já me estivera comigo, em algumas outras expedições, e o técnico agrícola Emerson Pereira da Silva. Depois de sermos ciceroneados pelo Dr. Mundico, que nos mostrou cada trecho do Parque das Bromélias, passamos alguns dias a vasculhar sua riqueza florística, até que fosse gerado o referido Diagnóstico Ambiental de 2001.

          A impressionante riqueza natural da Ponta do Garcês não seria assunto cabível para um texto tão breve como este. Não posso deixar de recomendar a leitura do referido Diagnóstico Ambiental-2001 disponível na internet. Apenas para figurar um pouco do que lá se encontra,  tão perto de Salvador, mas esplendidamente conservado, devo citar as únicas populações intactas da bromélia Hohenbergia castellanosii, hoje quase desaparecida, na região, por conta de sua coleta indiscriminada. Mas, uma infinidade de outras bromeliáceas importantes encontra lá abrigo: Aechmea blanchetiana, A. marauensis, A. amicorum, Hohenbergia stellata, além da gigantesca Aechmea multiflora. Dentre as orquídeas, impressiona a população de Encyclia oncidioides, cuja variação local empresta a impressão de se tratarem de várias espécies diferentes. Cattleya aclandiae, uma pequena joia botânica, vegeta até mesmo nas árvores intrincadas dos manguezais. Mas, havia uma surpresa, que viria a representar verdadeira arma secreta, no embate com a Petrobras pela conservação da Ponta do Garcês, em 2003: Era uma espécie nova de bromélia que somente viria a ser descrita para a ciência alguns anos depois, a partir de material enviado por mim aos cientistas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro – Hohenbergia carnavalii.

          Hohenbergia carnavalii é uma bromélia muito espinescente, que somente medra sob as florestas encharcadas de piaçavas, e que emite linda inflorescência encarnada, com flores minúsculas e arroxeadas. Não temos notícias de nenhuma outra população desta planta, fora da Ponta do Garcês. A Ponta do Garcês é uma área geologicamente nova, formada pela sedimentação do estuário do rio Jaguaripe, durante o período recente – Holoceno – contando não mais do que seis mil anos. Por isso, convergiram para lá espécies vindas da Cadeia do Espinhaço, do Cerrado e da Mata Atlântica, formando um inimitável pool de floras, que se encontram em plena efervescência genética.

Aspecto da bromélia Hohenbergia carnavalii, uma espécie restrita à Ponta do Garcês, que foi uma das armas secretas para a conservação do Parque das Bromélias


          Ainda durante 2001, tive a grata oportunidade de apresentar os resultados do Diagnóstico da Ponta do Garcês ao público, durante evento da SBBR, realizado no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Tinha gravado, num PPS (Power Point) bem ilustrado, toda a natureza da Ponta do Garcês, assim como os partidos que me haviam levado a sugerir um zoneamento ambiental, com o claro objetivo de subsidiar seu possível desenvolvimento. Entre os principais argumentos, além da riqueza florística singular, que incluía espécies ainda não descritas pela ciência, havia uma delicada questão geomorfológica. Ocorre que o PARQUE DAS BROMÉLIAS existia por força de uma extensa área dominada por uma rocha de arenito de praia, que mantinha o lençol freático suspenso, poucos centímetros abaixo da superfície. SUA BIODIVERSIDADE ESTAVA INDISSOCIAVELMENTE LIGADA À MANUTENÇÃO DESSE AQUÍFERO.

          Na medida em que apresentávamos esse mesmo PPS do Jardim Botânico, ao longo dos QUINZE MINUTOS (sim, somente quinze minutos), que nos foram dados, a muito contragosto, pelos organizadores do evento de Jaguaripe, a multidão arregalava os olhos e a equipe técnica da Petrobrás entrava em pânico. Os semblantes dos técnicos, que estavam na mesa, foram gradualmente se despindo do ar arrogante, com o qual haviam adentrado o salão, para se tomar de ódio lancinante, segundo me relatou Sérgio Tourinho, que acompanhava tudo, da plateia. Numa apresentação de mais de trinta minutos, eles haviam mostrado o PARQUE DAS BROMÉLIAS como uma “área degradada”, nada mais que um areal inútil, que nada sofreria, com a passagem do imenso tubulão. Para isso, tinham trabalhado em escala geográfica, exibindo imagens de satélite, sem NUNCA terem desembarcado na Ponta do Garcês, para conferir as informações remotas.

          Dr. Mundico morreu pouco antes de ser marcada a audiência pública da Petrobras, em 2003. No Rio de Janeiro, fui contatado pela família, com a triste notícia, acompanhada da informação de que ele afirmara, poucos dias antes, que “somente o Orlando Graeff teria possibilidade de ajudar, na luta pela salvação do PARQUE DAS BROMÉLIAS”. Como rejeitar a missão? Peguei meus arquivos sobre a Ponta do Garcês e segui apressado a Salvador, onde era aguardado pelo Dr. Sérgio Tourinho, sobrinho do Dr. Mundico, que advogaria na questão e acabou se tornando grande amigo. Junto com Sérgio e seu sócio Anibal Brandão, seguimos correndo para a Ponta do Garcês, ainda na véspera da audiência pública.

          Os estragos de nossas “baterias terrestres” sobre as hostes inimigas foi definitivo: Se o gasoduto atravessasse a Ponta do Garcês, pelo PARQUE DAS BROMÉLIAS, como estava projetado, acarretaria a drenagem do lençol d’água de que falamos, ocasionando seu rebaixamento e consequente extinção de sua flora – inclusive de espécies endêmicas e desconhecidas. Os Ministérios Públicos Federal e Estadual da Bahia, que se encontravam presentes, reagiram de pronto e a audiência pública se viu arruinada. Os pescadores ovacionaram nossa atuação e, na manhã seguinte, os dois Ministérios Públicos efetuaram uma visita ao PARQUE DAS BROMÉLIAS.

          Cerca de um mês após essa emocionante aventura, recebi um email de Sérgio Tourinho, acompanhado de uma matéria de jornal baiano: “O presidente da Petrobras determinara a alteração de traçado do gasoduto de S. F. do Conde, para que não afetasse o Parque das Bromélias, na Ponta do Garcês”. Mesmo reclamando do imenso custo financeiro da mudança, eles admitiam a importância ecológica do lugar. Nossa missão havia sido cumprida e as bromélias e orquídeas da Ponta do Garcês teriam sobrevida, permitindo que a posteridade pudesse estudar sua ecologia complexa, na qual reina magnânima a imensa Hohenbergia castellanosii. Neste instante, relembrei o Dr. Mundico e fiz um pensamento positivo a ele e à oportunidade de termos, juntos, deixado nossa marca conservacionista, na história natural da Bahia... E do Brasil.


Acima – Orlando Graeff ao lado de uma imensa bromélia Aechmea multiflora, nas restingas arbóreas da Ponta do Garcês. Sua inflorescência chama atenção, pela forma e tamanho – Abaixo



A Seguir – Ana Argôlo e Emerson P. da Silva, meus companheiros de excursões no Parque das Bromélias




Aspectos da paisagem da Ponta do Garcês, mostrando o arenito de praia, que aflora na costa e domina a área central da restinga.





AcimaCryptanthus lacerdae no solo da mata de piaçava



AcimaEpistephium lucidum, uma orquídea que vegeta nos campos limpos da Ponta do Garcês
AbaixoEpidendrum orchidiflorum, outra orquídea dos campos alagáveis da restinga






AcimaEpidendrum cinnabarinum cresce em meio à vegetação intrincada da Ponta do Garcês
AbaixoCattleya aclandiae é uma minúscula joia do Parque das Bromélias e vegeta até mesmo em meio aos manguezais da Ponta.




Abaixo – Orlando Graeff posa junto à conhecida bromélia Aechmea blanchetiana, vulgarmente conhecida como bromélia-porto-seguro, bastante comum em cultivo e nativa da Ponta do Garcês;






quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

E SE TODOS FIZESSEM ISSO? – COLETA OU EXTRATIVISMO. AMEAÇAS ÀS PLANTAS BRASILEIRAS


          O filósofo alemão Immanuel Kant, que viveu no Século XVIII, formulava esta pergunta, que testava questões morais, apelando à razão dos seres humanos, no sentido de refletirmos se nossas ações serviriam como padrão de comportamento: “E se todos fizessem isso?” De acordo com Kant, cujos postulados vigem até os dias atuais (ou, pelos menos deveriam!), bastaria nos fazermos esta simples pergunta, para sabermos se nossas atitudes eram morais ou não. Gandhi teria dado uma resposta bem simples, conquanto de forte conteúdo moral: “Faça de seu procedimento norma universal”.

          A questão afligia os milhares de membros da Sociedade Brasileira de Bromélias-SBBr, ainda nos anos de 1990, quando comecei minha atuação, na Diretoria de Conservação da célebre entidade, no início dos anos de 2000: Podemos ou não coletar plantas na natureza? Ainda não existiam diplomas legais com o alcance da Lei do Crime Ambiental, ou da Lei dos Acessos, que terminaram praticamente radicalizando o tema, algum tempo depois. Assim, o dilema dos bromeliófilos e bromeliólogos era essencialmente moral. Ao integrar os quadros da SBBr, a questão já havia sido amplamente discutida e, digamos assim, praticamente resolvida, apesar de ter retornado à cena, alguns anos depois, durante um importante evento nacional da SBBR sobre a conservação de bromeliáceas, que reuniu autoridades científicas e conservacionistas.

          O consenso era no sentido de que a coleta científica, ou com finalidades essencialmente de conservação ex situ, mesmo que em coleções privadas, representava atividade “tolerável”, ao passo que a coleta praticada no sentido de formar estoques comerciais representava extrativismo e, portanto, constituía crime ambiental (poluição). A partir deste conceito, os colecionadores poderiam pessoalmente recolher exemplares de bromélias, nos ecossistemas, desde que não formassem estoques. Os coletores profissionais, por seu turno, estariam cometendo crimes ambientais, quando pegassem bromélias ou quaisquer outras plantas, com objetivo de fazer dinheiro com elas.

          Tínhamos ainda, àquele tempo, diversos profissionais que sobreviviam da coleta de orquídeas e bromélias, na natureza, vendendo-as para empresas ou particulares. Eram os conhecidos “mateiros”, que, na verdade, ainda atuam até hoje. A origem do nome é evidente: Mateiros seriam gente da floresta, nascida e crescida em meio às atividades extrativistas, que reinaram no país, durante séculos. Havia a ideia geral de que nossas matas, cerrados e campos rupestres eram algo com dimensões infinitas e que teriam resiliência o bastante para suportar a coleta de suas diversas essências, desde a madeira às plantas ornamentais, refazendo-se continuamente de suas “pequenas” perdas.

          Os conflitos têm sido imensos, desde então, gerando mágoas insanáveis, de ambos os lados da questão, como ocorre na nefasta polarização verificada entre agricultores e entidades de defesa dos direitos das minorias – biodiversidade inclusa! Mas, a economia de escala produziu uma guinada irreversível e transformou a humanidade numa máquina de consumo descontrolado, na qual milhares, milhões de pessoas, cada uma com seus interesses pessoais, busca toda e qualquer coisa que lhe dê prazer adquirir (ou coletar), desde iphones e Ferraris, até orquídeas e bromélias. Smartphones costumam ter modelos novos, quase todos os meses; Ferraris nem tanto, mas jamais faltarão reluzentes carrões, novinhos em folha, para apaziguar as ansiedades consumistas da população; Já no caso das plantas ornamentais... A coisa é bem diferente!

          Ainda que surjam novidades cultivadas, a cada dia mais belas e bem trabalhadas, especialmente nessas duas importantes famílias botânicas – bromeliáceas e orquidáceas – os amantes de plantas ainda cobiçam raridades que esperam nos recônditos do sertão nacional, prontinhas para serem encontradas por (milhares de) colecionadores sequiosos. Cada um pensa que a sua coleta em nada afetará a sobrevivência das populações naturais. Pois, em meio a esta verdadeira pilhagem que vem sendo feita, geralmente por puro capricho pessoal, sem qualquer desígnio científico, é chegada a hora de nos fazermos a velha pergunta de Kunt: “E se todos fizessem isso?”

          Temos distorcido egoisticamente os preceitos filosóficos de outro pensador mais moderno – Peter Singer – agindo com uma ideia desconectada da realidade econômica atual. Em vez de nos fazermos a pergunta racional de Kunt, ou nos questionarmos se nos cabe tomar iniciativas solidárias, uma vez que alguém outro poderá tomá-las por nós, como levantou Singer, oferecemos uma resposta à priori, que é dada somente para satisfazer nossa vil consciência e revestir de moral o que não é: “Ora, sou apenas eu a fazer isso!”

          Nalguns casos ainda mais amorais, afirmamos: “Se eu não coletar, virá alguém mais e o fará!” E assim seguimos em nosso assalto interminável à mãe natureza, pensando apenas em nossos desejos, sem perceber que estamos aprisionados num ciclo sem fim de desejos que cultivamos, atendemos e voltamos a ter novos desejos ainda mais ambiciosos. Isso não chega a ser novidade e Arthur Schopenhauer já diagnosticara isso, ainda no alvorecer do Século XIX.

          Então, quando estivermos caminhando entre os soberbos blocos rochosos da Serra dos Pirineus, em Goiás, e avistarmos uma população de Tillandsia barrosoae, pequena bromélia bronzina, que somente ocorre neste lugar, entre cactáceas, clusiáceas e marcgraviáceas tortuosas, sentindo aquele desejo incontido de possuir um exemplar; Ou quando visitarmos os campos rupestres da Chapada Diamantina, sentindo-nos atraídos por magníficas e raras orquídeas como Hadrolaelia sincorana, que somente vegeta nos troncos grossos de veloziáceas endêmicas; que tal pensarmos: “E se todos fizessem isso?”

          Não sou nenhum santo! Já coletei plantas, desde menino, inicialmente atendendo ao desejo de possuí-las. Mas, procurei evoluir e tornar-me mais civilizado. Isso incluiu despir-me, progressivamente, dos desejos infantis e insaciáveis de posse, ao menos quando isso envolvia a ética. Afinal, na maior parte das vezes, levamos essas joias para casa, pensando que saberemos cultivá-las, apenas para vê-las fenecer e morrer, algum tempo depois. Nos dias de hoje, faço-me imediatamente a pergunta: “E se todos fizessem isso?” A propósito, devo lembrar ainda mais uma pergunta ser feita: “E se eu for flagrado pelas autoridades transgredindo a Lei?” Vale fazer as duas perguntas, simultaneamente, lembrando que acabamos de celebrar o dia dos fotógrafos, que “caçam” belas imagens dessas mesmas plantas, deixando-as lá, para reproduzirem e se perpetuarem.

          BOM SAFÁRI FOTOGRÁFICO A TODOS.


A magnífica bromélia Hohenbergia castellanosii do Recôncavo Baiano está no limiar do seu desaparecimento, por força de sua intensa coleta, para abastecimento do mercado paisagístico


As populações naturais de Hohenbergia castellanosii são de distribuição complexa e não suportam a coleta extrativista, realizada à exaustão


A pequena e delicada bromélia Tillandsia barrosoae somente ocorre nos afloramentos da Serra dos Pirineus, em Goiás, infelizmente próxima demais de Brasília. Essa proximidade vem sendo fatal, pela facilidade com que se visita o local, propiciando coleta amadorística e profissional


Tillandsia barrosoae não é uma planta numerosa, em seu habitat. Se cada visitante resolver coletar um exemplar que seja, ela desaparecerá rapidamente


O autor do blog, na Chapada Diamantina, junto ao jardim natural de orquídeas e bromélias da transição Caatinga - Cerrado - Mata Atlântica: Melhor observá-las na natureza, onde encontram seu habitat ideal. Em nossas casas, dificilmente sobreviverão


Orquidário do estado de São Paulo, onde as mais belas plantas são produzidas massivamente, propiciando beleza e adaptação para nosso cultivo


quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

VIAGEM AO CAMBOJA – IMPRESSÕES DE MÁRCIA BRITO


          Depois de ter postado minhas habituais frivolidades, em meu blog, deparei com o texto absolutamente aprisionador de minha amiga Márcia Lobo Brito, que postou um pouco de suas experiências viajeiras, lá do Camboja, onde se encontra agora. Não resisti! Deliciado com sua leitura, tive que me curvar humildemente diante de coisa tão esplêndida. E resolvi transcrever o que ela colocou no Facebook, assim como algumas de suas fotografias carregadas de sensibilidade. Assim, fazendo uma exceção, em meu blog, apresento a vocês não o que eu escrevi, mas o depoimento literário da minha amiga Márcia Brito:


“Como um lugar tão pobre consegue erguer telhados tão delicados e criativos? Estamos numa pequena vila do Camboja. Procuro o melhor ângulo para fotografar uma cumeeira com suas pontas em leque viradas para cima, quando um macaco de mais ou menos meio metro de altura aparece e se senta ao meu lado, intrigado com o meu interesse ele olha pra cima como quem procura um suicida prestes a se atirar ou um ovni. Ficamos os dois olhando pro alto, sem muito assunto. Ele boceja, igual a um cachorro vira-lata de cidadezinha do interior. Deve ser esse calor dos infernos que dá essa preguiça.”




“Esse porto foi recém aberto para navios de turismo e a população local ainda não está habituada com os turistas. A pobreza é acachapante, a expectativa média de vida no interior é de 54 anos. Mas todos parecem felizes.

Acabamos entrando no pátio de um colégio, no meio da hora do recreio. As crianças, lindas, estão por todo lado. Elas nos cercam ainda mais curiosas que o macaco. Não sabem falar nossa língua então se comunicam através de sorrisos enormes e olhos de uma pureza cintilante.

Tiro fotos sem parar e elas se amontoam na frente da câmera para esse grande evento. Isso passa a ser a nossa forma de comunicação. Rimos uns para os outros após cada foto, fazendo também pequenas reverências com a cabeça.

Em cidades do interior as escolas são grátis (primeiro grau), 4 horas por dia, sendo que existem 2 turnos – de manhã e de tarde. Como o calor é bestial na parte da tarde, as turmas revezam e cada mês uma fica com o horário da manhã.

Se você morar na cidade grande, ou seja, tiver uma boa condição de vida, aí você paga o colégio. Custa o equivalente a U$7.00 de mensalidade por aluno. Um professor ganha menos do que U$100.00 de salário por mês. Pois é.

O sonho de consumo aqui é poder comprar um búfalo pra ajudar com o serviço pesado da lavoura de arroz. Um búfalo custa por volta de U$380.00.

Click! Click! Click! As crianças não cansam da brincadeira, rindo muito depois da foto. Finalmente entendi... ! Ficavam esperando paradinhas com toda a atenção A LUZ DO FLASH! Acham aquilo lindo, uma espécie de pirotecnia que os turistas trazem...

Gostaria de ter uma Polaroid para poder dar para as crianças uma reprodução daquele momento. Gostaria de ter umas balas no bolso.

O sol desceu como uma grande bola de fogo escondendo o Camboja de nós para sempre a medida que o navio se afastava.
Olho as fotos das crianças. Viajar é muito bom...”







SOCIAL PARAISO – PALERMO – BUENOS AYRES: MAIS UMA INESQUECÍVEL EXPERIÊNCIA ENOGASTRONÔMICA DE GRANDE IMPORTÂNCIA


          Durante nossa viagem pelo Cone Sul – Rio Grande do Sul, Uruguay e Argentina – fomos parar na mítica Buenos Ayres, onde sempre acabamos dando uma parada para conferir como andam as coisas... Especialmente no que diz respeito às comidas e aos vinhos, é claro! A Argentina anda um bocado conturbada, o que não a torna tão distante de nós, afinal. Quando não somos nós, são eles, cada um a seu tempo, cada um da sua maneira. Mas, gente boa manda bem em qualquer canto. E teve quem mandasse muito, mas muito bem mesmo, na minha Buenos Ayres querida.
          Estávamos no Palermo, zona tensa, quando o assunto são comidas e bebidas. Já andei falando dos meus modestos garimpos de vinhos, entre o Uruguay e a Argentina. Contei dos bons rótulos que me apresentou o Alessandro, da Malambo Vinoteca Almacen Criollo, que ficava na esquina de nosso hotel. Mas, houve outra fonte em que aprendemos a beber, quando o assunto eram os bons lugares para COMER! Falo do blog gastronômico BLOG DEL GORDITO (http://www.blogdelgordito.com/ ), que conhecemos por acaso, navegando na internet, mas que passou a ser indispensável , em nossas jornadas contínuas pelos restaurantes portenhos.
          Posso afirmar hoje que não dou um passo sequer, com fome, em Buenos Ayres, sem consultar o BLOG DEL GORDITO. Não houve sugestão ou opinião que não se revelasse perfeita. Parecia que éramos nós a escrever as opiniões sobre os bons e excelentes restaurantes da cidade. O restaurante Calden Del Soho (Honduras, 4701), por exemplo, restaurou minha fé nos bifes de chorizo cortados ao estilo mariposa, que não andavam caindo assim tão bem como há tempos: Perfeitos e deliciosos! Mas, a surpresa maior estava por vir: O bistrô chamado Social Paraiso, também na Honduras (5182), revelou algo que estava meio difícil encontrar em BA. GASTRONOMIA, em sua mais verdadeira acepção.
          É um lugar pequeno, com jeitinho de bar-restaurante do passado, fazendo lembrar até um salão de barbearia dos anos 1940, numa New York que não conheci, mas não tenho dificuldades em imaginar. Um salão discreto, por detrás de grandes janelas de vidro, que permitem observar o movimento romântico da Honduras, com seu jeito retrô. O pedido foi um primo piato que era um salteado de funghi com tomates secos, que, de tão delicioso, somente fez aumentar ainda mais a fome; O prato principal foi o lendário matambre de porco, com frutas salteadas e soufflé de batatas... Imperdível! Estava difícil crer que se poderia comer com tanta qualidade gastronômica, na cidade de los hermanos. É bom que deixemos clara a diferença entre CULINÁRIA e GASTRONOMIA, sendo a primeira uma atividade; a segunda uma ARTE. E arte foi o que se viu... E se comeu, no Social Paraiso, naquela noite de setembro de 2012.
          Mas, havia ainda uma surpresa ainda maior: RUCA MALEN -  Reserva de Bodega – um tinto argentino de peso, que resulta de um corte magistral entre QUATRO, sim, QUATRO CEPAS de uvas que se aproximam de um blend Bordeaux: Cabernet Sauvignon (40%) + Syrah (28%) + Malbec (22%) + Petit Verdot (10%). Quando olhamos Ruca Malen, uma bodega que não nos é estranha, no Brasil, achei que cairíamos num pouco mais do mesmo. Ledo engano! Ficamos maravilhados não apenas com o corpo, a coloração e a duração na boca desta experiência argentina; mas também com o ajuste perfeito da sua harmonização com ambos os pratos.
          Acabamos causando surpresa também ao pessoal do bistrô, quando enviamos ao Chefe nossos cumprimentos, num guardanapo desenhado, bem ao estilo dos anos de 1980, no Caneco Setenta, do Rio, onde apusemos nossa opinião: MANDOU BEM! Depois de explicar aos portenhos do que se tratava tal interjeição, arrancamos sorrisos e saímos de lá repletos de prazer, passando a crer que argentino sabe realmente fazer cozinha experimental.
          Depois de muito buscar, aqui no Brasil, acabamos encontrando uma garrafa deste mesmo vinho RUCA MALEN -  Reserva de Bodega – safra 2009, que foi consumida na noite de Natal, acompanhanda uma trança de filé mignon suíno, em Itaipava. A expedição de setembro de 2012 fora um sucesso, em todos os sentidos. Lá se vai mais um ano, terminado com mais alguns amigos, muitas boas comidas e excelentes experiências enogastronômicas... MANDOU BEM! 



Acima - Fachada do bistrô Social Paraiso, em Buenos Ayres

Abaixo - Interior do Social Paraíso

(fotos da web - Polar Blog)



A Seguir - A garrafa de Ruca Malen - Reserva de Bodega respira um pouco, tendo ao fundo os Jardins do Templo Fitogeográfico; A seguir, a mesa de Natal, onde o potente tinto argentino finalmente se encontrou com a soberba trança de filés mignon suínos, para nos oferecer uma das mais harmoniosas refeições em tempos recentes