quarta-feira, 11 de março de 2015

ANJOS E DEMÔNIOS – NOSSA ÉTICA LADEIRA ABAIXO

               Em meus passeios pelos estonteantes museus britânicos, onde se visita gratuitamente alguns dos mais importantes tesouros culturais da humanidade, encontrei meu grande amigo Felipe Costa, que andava em frente a uma das galerias de um desses museus, com um ar meio abichornado. Indaguei a ele qual a razão de seu semblante preocupado:

- Salve, Costa, que acervo artístico, não?
- É sim, tudo isso aqui disponível aos jovens ingleses, sem qualquer custo! Que responsabilidade com a educação, com a cultura...
- Então, oras, por que este semblante sério? O que te aflige?
- Sabe o que é, amigo? É que eu acho que não fui muito correto, há alguns minutos...
- O que é isso? Não furou a fila, não é? Os britânicos não gostam dessas coisas.
- Por certo que não, o amigo sabe de minha determinação ética. É que saí tirando umas fotos, havia alguns outros estrangeiros fazendo o mesmo, me animei... clic, clic, clic... Até enxergar aquele cartaz ali, veja.
- PROIBIDO FOTOGRAFIAS... Compreendo. Bem, afinal, ninguém está a fiscalizar... Outros turistas fazem o mesmo...
- Mas, você me conhece: não sou os outros, sabe que oriento meu procedimento pensando no que é certo, não naquilo que os outros fazem.

               Ruborizei com minhas concessões. Felipe é um garoto ético, age no sentido de que seus procedimentos representem norma universal... Gandhi. Eu mesmo, aqui em meu blog (http://orlandograeff.blogspot.com.br/search?q=e+se+todos+fizessem+isso) uma dessas vezes, aludi aos postulados de Kant, que perguntava provocativo: “e se todos fizessem isso?” Um pouco envergonhado de minha leniência ética, refleti um pouco sobre o impasse moral de meu jovem amigo.

               Felipe é um homem jovem, autêntico representante das novas gerações que herdarão o mundo. Tem pouco mais de vinte anos. O que seriam vinte aninhos, diante de minha longa experiência de cinquentão? TUDO, respondo eu! O frescor ético do meu jovem amigo é o azeite que lubrifica nossa sociedade viciada e cheia de, digamos assim, concessões. Estragados pela educação gradualmente destituída da ética, pagamos propina ao guarda, furamos fila, estacionamos na vaga dos deficientes, sujamos tudo à nossa volta (no sentido amplo do que isso significa). Felipe Costa, não, ele acha que isso é errado. Se é errado, por que fazer?

               Tratei de mitigar as angústias de meu amigo, sem deixar de concordar com seus princípios, dizendo a ele que nem precisaria se dar ao trabalho de fotografar tantas telas e esculturas. Afinal, na internet, ele poderia obter imagens de alta qualidade daquelas obras, além de fichas técnicas sobre elas... Há até o site dos museus! Seguimos adiante, ele sem fotografar mais nada e eu pensando com meus botões sobre a lição que tivera de meu jovem amigo.

               Algumas horas depois, vagando pelas tranquilas e bem arrumadas ruas do bairro de Belgravia, onde aprecio ficar, quando visito Londres, tive outro sinal de como é possível situar em nós mesmos, seres humanos ditos civilizados, nossos anjos e nossos demônios. Ao aguardar para atravessar uma rua muito calma, achei por bem respeitar o sinal de trânsito, mesmo quase não havendo automóveis. Quando o sinal finalmente abriu para mim, fazendo-me ensaiar os primeiros passos para atravessar, eis que enxergo um ciclista que se aproximava, ostentando seu capacete e seus elegantes trajes desportivos. Cuidado, disse a mim mesmo, ele vai passar correndo e me atropela!

               Foi quando reencontrei meus anjos e meus demônios: orientado por meus maliciosos diabinhos brasileiros, que nos fazem treinados em toda sorte de pilantragens e incivilidades triviais, preveni-me contra uma suposta agressividade do ciclista inglês, que não veio: o rapaz (também ele um jovem, como Felipe) parou antes da faixa de pedestres e assim permaneceu, até muito tempo após minha passagem, retomando suas pedaladas, tão logo lhe surgiu o sinal verde.

               Em Londres, devo dizer, para-se ao sinal vermelho, esteja você num automóvel, esteja você numa bicicleta! É a norma, é a lei. Se o ciclista não parasse, TALVEZ fosse multado, pois sim, há multas para isso, na capital britânica. Mas, não foi o caso. A rua estava quase deserta, não havia qualquer policial próximo e, mesmo que houvesse câmeras (pois que as há às centenas, por todos os lados), o rapaz não tinha qualquer placa de identificação à mostra em seu “camelo”. Por que parou ele, então, se os seu diabinho particular talvez lhe falasse ao ouvido: “vai lá, passa o sinal, que vai perder tempo aí parado”?

               Ocorre que, em países civilizados, que já passaram pelos tempos de pátria educadora, há muitas centenas de anos, para viver numa fase de PÁTRIA EDUCADA, vive-se a ética com ênfase, devidamente transformada no “anjinho”, que lhes vai ao ombro, fazendo-os perguntar de forma inversa àquela sugerida pelo diabinho: “SE É O CERTO, POR QUE NÃO FAZÊ-LO?

               Terminando minha reflexão, voltei ao que me dissera Felipe, horas antes, na galeria do museu. Se um procedimento é certo, por que DIABOS não fazê-lo? Mesmo que não haja alguém observando, um guarda de trânsito ou até mesmo um fiscal de museu, se há uma regra, se dispõe uma lei, devemos respeitá-las instintivamente, sem escutar as bobagens segredadas de nossos ombros, pelo demoniozinho impertinente que vive em todos os humanos. Foi o que se propôs a fazer Felipe, foi o que fez o ciclista londrino.

               Afirmamo-nos CIVILIZADOS, frequentemente apontado o dedo aos infratores pelos seus deslizes, em geral os grandes e notáveis. Mas, com grande frequência... Ou melhor, com GRADUAL FREQUÊNCIA, vamos fazendo concessões as mais diversas, em nossa PÁTRIA DESEDUCADA, pensando sempre em nós mesmos, em nossa comodidade, na praticidade da vida e, por fim, em interesse próprio. Instigados pelos nossos demônios, estamos caminhando ladeira abaixo em nossa ética, pois viramos uma sociedade autista, onde cada um somente olha para sua barriga, evitando os olhares pidões dos outros. Certo personagem cômico, de uma famosa revista americana, indagava: “what, me worry?” (O quê, eu me preocupar?).

               A lei é o complexo das condições existenciais da sociedade. Isso significa que, numa democracia, os representantes do povo se reúnem, debatem, escutam especialistas sobre os mais diversos assuntos e, por fim, elaboram as leis, que representam o pacto moral sobre o que se pode ou não fazer; sobre o que se deve ou não fazer; e, é claro, como punir aqueles que não respeitam a lei. Muito simples: a força policial cuida para que os cidadãos cumpram as leis (é o que os ingleses chamam – enforcement); o poder judiciário julga e eventualmente condena aqueles que transgridem esse código maior de procedimento. Mas, não há um policial para cada habitante, nem tampouco batalhões de juízes a dirimir os “casos”... E nem precisaria haver!

               Não serão nunca suficientes os milhares, milhões de policiais, para fiscalizar e coibir os atos lesivos à lei praticados por incontáveis cidadãos, se esses resolverem perseguir seus únicos interesses e vontades pessoais, atendendo aos “conselhos” do diabinho que lhes monta ao ombro. A ética é exatamente a noção do indivíduo de que existe um código de procedimentos, que é condição fundamental da existência da civilização. O indivíduo ético cumpre as leis, por que entende que isso é necessário – escuta seus anjos, em vez dos demônios. Foi como agiu Felipe, foi o que fez o ciclista de Londres!

               Obrigado, Felipe, por me fazer lembrar que devo rejuvenescer à sua consciência do que é ético, renunciando aos conselhos impertinentes de meus demônios envelhecidos, que me querem incivilizado. Sou brasileiro, sim, mas não creio que seja esta uma “qualidade” de nosso povo: sermos o país do jeitinho, a pátria da deseducação, a ladeira descendente da civilização, ao sabor da renúncia endêmica à ética. Bem, se o cartaz do museu determina suas normas – PROIBIDO FOTOGRAFAR – vamos guardar nossas câmeras; se o sinal está vermelho, vamos parar, mesmo que não haja um guarda anotando nossas placas. Somos nós mesmos os responsáveis por nossos anjos e demônios.

jovens aguardam o sinal abrir, para prosseguir com suas bicicletas, em Oxford, na Inglaterra: fazem isso simplesmente por que... é o certo!



Nenhum comentário:

Postar um comentário